Capítulo 30

359 48 6
                                    

André

Fazia um tempo que eu o estava observando. Ele parecia perdido enquanto olhava para além da janela, e sua expressão lembrava muito a que ele costumava sustentar enquanto bebia pelos bares da cidade.

Vazio. Puro e ofensivo. Um buraco tão grande quanto invisível, mas profundamente explícito. Ele vestia a capa da solidão e da dor como uma segunda pele, mas não transparecia isso de forma aberta. Era necessário olhar mais fundo, olhar melhor, só então era possível ver.

Eu queria perguntar qual era o problema, mas as palavras ficaram grudadas no meu palato. Eu não sabia se queria saber; na verdade, eu ainda tinha medo de saber a verdade sobre ele. Meu dilema moral me colocava na parede o tempo todo, afinal, eu tinha um contrato com uma cliente e Jeff havia feito algo claramente muito errado com essa cliente. Jeff não parecia disposto a abrir o assunto, mas uma hora teria que fazê-lo... Ou não, afinal, muito em breve ele estaria melhor.

Muito em breve, ele iria partir.

Eu não queria pensar nisso.

Mas precisava pensar nisso.

– Posso fazer algo por você? – Perguntei. Esperei a chacota, que não veio. Ele sequer olhou na minha direção.

– Preciso te confessar uma coisa.

Gelei. Eu queria, mas não queria. Me senti tão covarde que fiquei com vergonha de mim mesmo.

– Seja o que for, pode ser quando estiver se sentindo bem. Claramente você não está na sua melhor forma agora. Quer comer alguma coisa?

Eu precisava forçá-lo a comer. Ângela havia me dito que o soro fornecia o essencial para mantê-lo hidratado e tal, mas ele precisava se fortalecer, então comer era primordial. O problema era que ele não conseguia comer direito.

– Não quero.

– Posso arrumar o que você quiser.

– Eu não quero nada.

– Jeff...

– O que eu quero não posso ter, e de qualquer maneira, você não me daria. Já tivemos essa conversa.

Senti meu peito apertar um pouco mais com a constatação de que ele queria beber. Eu não era um iludido, crescera com um pai alcoólatra e sabia que não havia nada no mundo que o homem amasse mais do que uma dose. Nem mesmo a esposa, muito menos o filho, nada foi capaz de fazer meu pai desistir da bebida, até que um acidente enquanto alcoolizado o privou da próxima dose.

Jeff não era alcoólatra. Não diagnosticado. Não ainda. Mas essa escuridão o levaria por esse caminho, fatalmente. Eu queria poder ajudar, mas não ajudaria. Não com meu histórico.

Eu desistiria dele, certamente.

– Eu sequestrei a Larah – a revelação veio frouxa, isenta de sentimento ou intenção. Foi como se ele tivesse dito: "vai chover hoje". Ainda que eu já tivesse deduzido, ouvi-lo confessar me desestruturou.

– Eu não entendo... Por que ninguém fala sobre isso? Por que não foi reportado?

– Eles não podem divulgar, abrir inquérito, me acusar... Eles não podem fazer nada disso.

– Por quê?

– Onde está meu celular? – Ele perguntou como se não tivesse acabado de mandar essa bomba no meio da sala.

– Como assim? Você manda essa bronca pro meu lado e me pede a porra do celular? Qual é a tua?

– O celular, André. Onde está?

– Eu não vou te dar o celular até você me explicar essa história direito.

Só então ele olhou para mim. Num primeiro momento, me senti meio mole com aquele olhar, mas depois fiquei com medo. Ele se tornou tão ameaçador de uma hora pra outra que nem parecia a mesma pessoa machucada de antes.

– Explicar? Não tem o que explicar! Me dá a porra do celular, André!

– Não.

Me coloquei de pé e, apesar de ser notório o quão dolorido foi, ele fez o mesmo.

– Me. Dá. A. Porra. Do. Celular!

– Por que você sequestrou sua própria filha?

– O celular!

– Jeff!

Ele deu dois passos e, para minha completa surpresa, me puxou pela gola da camiseta. Havia fogo em seus olhos, como da vez que o mandei embora. Bem, isso não ia acontecer agora.

– É importante, André. Você precisa confiar em mim!

– Como posso confiar em você? O que me leva a confiar?

– Eu nunca menti pra você.

Fiquei pensando. De fato, eu até podia acreditar nisso. Mas tinha que me resguardar.

– Por que ficava de bar em bar enchendo a cara?

– Porque sou um quase alcoólatra!

– Mentira!

– Não é mentira!

– Tá, não é, mas também não é o real motivo!

Ele respirava pesado. Percebi que parecia cansado e incomodado, mas isso não diminuía a força de seu punho. Quase me acovardei, mas eu era bem obstinado quando queria.

– Eu estava procurando uma coisa.

– Que coisa?

– Um lugar.

– Que lugar?

– Um lugar que fica num bar.

– Você está dando voltas pra não responder!

– Não estou!

– Que tipo de lugar?

– Caralho André! Você fala de confiança, mas ainda trabalha pra minha ex-mulher!

Encarei sua linda face. Não era justo ele ser tão bonito. Não era justo eu me sentir dessa maneira sobre ele, principalmente porque nosso lance nem tinha começado direito e já havia um monte de rachaduras ocasionadas pela desconfiança mútua.

Resignado, soltei o ar e me desvencilhei do agarre. Ele cambaleou, e eu não tentei ajudá-lo. Ele que se estatelasse no chão, estava pouco me fodendo. Voltei ao meu quarto e peguei o aparelho na gaveta da mesa de cabeceira.

– Eu fiquei na porra do teu lado esse tempo todo, e você tá aqui, de novo, atravancando minha sala. Então penso que merecia ao menos o benefício da dúvida – joguei o celular no sofá – confiança é uma via de mão dupla, e se tem alguém que cometeu um crime nessa sala, esse alguém não sou eu. Me diga em que cenário eu seria a pessoa que desmerece confiança.

Saí da sala e voltei para o meu quarto. Troquei de roupa e liguei pra Ângela.

– Oi, tudo bem? Olha só, o Jeff me parece abatido. Veja se consegue vir aqui dar uma olhada nele, fazer aquele lance com o estetoscópio pra ver se tem fluídos, sei lá. Eu vou precisar sair e não sei que horas volto.

Ela se comprometeu a passar no meu apartamento depois do almoço, mas eu não estava disposto a esperar por ela. Sem uma palavra, saí deixando Jeff sozinho com as merdas dos segredos dele.

Improvável (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora