Capítulo 38

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André

Fazia uns dez minutos que Doralice gritava com Jeff na porta de casa. Ele não respondia, não se defendia, apenas olhava através dela, para o imenso breu que se estendia além da pequena cerca do entorno daquele casebre simplório. Pensei por um instante no quanto aquela escuridão sem fim se parecia muito com a que ele tinha por dentro.

Eu confesso que esperava ao menos um abraço de alívio da mulher responsável por salvar Jeff de uma existência terrível; imaginei que ela receberia o "filho" com um pouco mais de carinho depois de mais de quase um mês sem qualquer contato, mas não foi o que aconteceu.

Eu não me aproximei. Me mantive à parte da cena, esperando o momento certo para entrar no carro e deixar tudo para trás. Eu o teria feito, se meus pés não estivessem grudados ao chão lamacento, como que aterrados pela curiosidade em ver a menina, o centro de tamanha trama.

Num dado momento, me dei conta que nenhum dos dois parecia se importar que eu estava ali. Talvez já tivessem se esquecido da minha presença, e essa era a minha deixa para partir, mas ao invés de entrar no carro, fechei a porta e me aproximei.

– Vocês estão aqui há um bom tempo. A menina está sozinha dentro da casa? – Inquiri, e fui fulminado pelas esferas mortíferas da mulher que já vinha arrancando a pele de Jeff. Se ficasse ali, o próximo seria eu.

– O que você ainda está fazendo aqui? – A mulher ladrou.

– Mãe! – Foi a primeira vez que Jeff usou a voz. Havia uma advertência implícita em seu tom, o suficiente para fazer a mulher recuar. Fiquei impressionado.

– Me desculpe. Só queria saber se a menina está bem, se precisam de mais alguma coisa. Acho que já vou embora. – Me inclinei um pouco para a senhora e meu olhar cruzou com o de Jeff por uma parcela de segundo, o suficiente para a lâmina gelada me perfurar o coração.

Eu não estava pronto. Nunca estive, mas não estar pronto não me impedia de me foder tentando. Quando girei sobre os calcanhares, ouvi a voz de Jeff, bem mais firme do que antes.

– Você quer conhecê-la?

Olhei para ele. Doralice olhava de um para o outro, tentando entender o clima pesado e a conexão pungente. Jeff caminhou até a entrada da casa, e com um movimento de cabeça, me convidou a entrar. Sem protelar muito, eu o segui porta adentro.

A casa era bem simples, a estrutura estava meio decadente, mas era limpa, apesar do cheiro de cigarro impregnado ao local. Segui Jeff por um corredor curto com duas portas ripadas pintadas de azul escuro. Ele empurrou uma delas de modo lento a fim de não fazer barulho.

O aposento era amplo, mas dividido ao meio por um guarda-roupas. As paredes já tinham visto dias melhores; a luz tênue não iluminava direito o espaço pois era bloqueada pelo guarda-roupa, mas clareava o suficiente os cantos e todo o contorno abaixo do forro, marcados por manchas de mofo, rachaduras e pequenas teias lotadas de insetos característicos de casas no meio do mato; o piso de cimento queimado, apesar de desgastado, estava lustrado e, diferente do teto, não tinha insetos entocados.

Imaginei que pela altura de Doralice, ela não conseguia alcançar os cantos do teto nem com uma vassoura, mas se esforçava para manter tudo em ordem. Hesitante, dei os curtos passos atrás do Jeff até a beira de uma cama improvisada no canto menos iluminado do local. Quando meus olhos se acostumaram à pouca luz, pude ver um berço apoiado à parede dos fundos.

– Ei! Você está acordada a essa hora? Que boa notícia! – Jeff falou com uma voz que eu nunca tinha ouvido antes. O som me causou um arrepio.

Vi quando ele se inclinou pegando a garota no colo. A menina produziu pequenos sons seguidos por uma gargalhada fofa. Doralice estava bem atrás de mim, eu jurava que podia sentir seus olhos queimando minhas omoplatas. Quando Jeff se virou na minha direção e caminhou até a porta, a luz pálida do corredor os iluminou totalmente, e quando pude enxergá-los com clareza, a cena roubou meu ar.

Eu devo ter ficado uns cinco minutos com a boca aberta (ok, talvez menos). A garota era linda! Eles dois juntos eram... Uma obra de Michelangelo! A menina ganhava em beleza por ser um bebê muito cabeludo e de olhos imensos e claros, mas o pai...

Por mais que soubesse que Jeff tinha uma filha, nunca o vi como pai, e a imagem me trouxe uma consciência pesada de que eu não sabia quase nada a respeito dele, ademais das histórias que me contara. Eu havia feito um excelente trabalho de pesquisa e tinha muita informação sobre ele, o que não significava que eu o conhecia. Agora, olhando para ele, sob a luz tênue de uma lâmpada amarelada, com uma criança de beleza singular cujos olhos eram a réplica exata dos seus, eu finalmente entendi meus sentimentos.

Jeff era tudo aquilo que sonhei ser, e que sonhei ter, numa só pessoa. Sempre disse que não queria filhos, mas com ele, eu teria. Eu não me considerava gay, mas descobri que, por ele, eu seria. Não era qualquer homem, era ele, e ver a forma como ele olhava para a garotinha enquanto suas mãozinhas rechonchudas brincavam com sua barba crescida, me emocionou e me fez desejar apagar seu passado para que ele tivesse uma chance de ser o pai que Larah merecia ter.

Eu queria fazer parte disso. Nunca quis algo com tanto afinco em toda a minha vida.

– Esse aqui é o tio André – ele me pegou pela mão e virou a criança na minha direção. Sua mãozinha suja de baba tocou meu nariz, e se fosse em qualquer outra circunstância eu me sentiria compelido a limpar o local. Com ela, não me senti assim, porque ela tinha os olhos dele.

– Vocês querem um café? – Doralice me lembrou de sua existência. Definitivamente eu não queria café, mas aceitaria qualquer desculpa para passar mais cinco minutos com pai e filha. Apenas aquiesci.

Quando a mulher se embrenhou na cozinha, notei que Jeff ainda segurava minha mão. Ao perceber um tremor na ponta dos seus dedos, olhei da mão para seus olhos, e pude ver as lágrimas contidas. Aquilo foi tão forte, tão intenso, que não me contive e o puxei para mim. Ele tombou a cabeça no meu ombro enquanto a menina escalava meu colo. Passei o braço por sob a criança e a encaixei entre nossos corpos, e foi quando senti um solavanco, depois outro.

Ele estava chorando. A cada soluço que dava, eu lia o alívio que ele sentia por estar ali, com a filha, e por ela estar bem. De alguma forma, senti que também fazia parte do momento, que ele também estava emocionado por ter meu ombro para desabar, ou pelo simples fato de eu ter sido imprescindível para que esse momento pudesse acontecer. Quando dei por mim, meu rosto também estava molhado, e eu depositei um beijo em seus cabelos e deixei as lágrimas descerem, livres e sem constrangimento.

– Ba-bai... – Ouvi a menina articular de encontro ao pescoço do Jeff, e um fio de baba ficou preso entre eles. Riso e choro se misturaram nos soluços que Jeff dava, e isso me fez sentir que meu peito se expandia, infinito, como se precisasse de muito mais espaço para abrigar todo o amor que eu estava testemunhando... Que estava sentindo.

– É sim, Larinha. É o papai – então ele voltou seus olhos injetados na minha direção. As lâminas agora aquecidas e escurecidas como amálgama me penetraram até o fundo da alma.

– Jeff... – Eu queria dizer alguma coisa, qualquer coisa, mas não conseguia.

– Tudo bem, André. Eu sei – e sorriu – obrigado. Muito obrigado por salvar minha vida, e por me trazer de volta pra casa.

Improvável (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora