Capítulo 51

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Jeff

Primeiro veio a pontada, depois, a consciência. Senti meu corpo jogado num ângulo estranho, meio anormal, mas não podia me mover. Havia um cheiro acre no ar, algo além da umidade e do aroma avinagrado. Urina, suor... Sangue.

Tentei abrir os olhos. A dor entrava como que pelos meus ouvidos e atravessava as íris, como flechas teleguiadas. Foi tão intensa que fez o estômago embrulhar. Melhor deixar os olhos fechados, isso garantiria minha sobrevivência por mais algum tempo.

Senti algo pegajoso sob meu rosto, deduzi ser sangue. Especulei se seria meu. Óbvio que era meu, como eu era idiota! Especulei se o mau cheiro também seria e... Droga! Eu estava fedendo? De novo? André ia tirar onda com a minha cara...

André...

Larah...

Doralice...

Subitamente, tudo voltou com força. Tentei me mover de novo, mas era impossível. Havia algo errado com meus braços, eles deixaram de existir, ou estavam há tanto tempo na mesma posição que o sangue não circulava mais. Meu corpo inteiro tremia incontrolavelmente, o que não fazia sentido, pois o clima estava abafado naquele buraco.

O gosto metálico do sangue na minha boca me deixou enjoado de novo. Ouvi sons; concentrei-me no que tinha à minha volta, principalmente nos ruídos tênues, porque por algum motivo eu não conseguia enxergar direito, e não era só porque estava meio escuro. Mapeei o que podia detectar: a sudoeste, uma massa grande estendida... Um corpo. Thor? Teria conseguido apagar o cara? Por quanto tempo?

Aos poucos, as dores nos tendões esticados dos braços amarrados começaram a se tornar insuportáveis. Ao menos significava que não estavam gangrenados. Senti lágrimas nos olhos e cuspi um pouco do sangue. Quanto tempo levaria para que alguém aparecesse ali e descobrisse que tinha dado merda com o Thor? Ou pior, quanto tempo até ele acordar, se estivesse apenas desmaiado? André precisava correr!

André. Eu tinha uma convicção inabalável de que aquele filho da puta nerd ia me encontrar. O desgraçado de faro aguçado e dedo verde ia tocar na campainha certa, e isso era tão certo quanto o gosto de sangue em minha boca. Eu só esperava que isso acontecesse antes do grandão terminar o serviço comigo.

Munido de nova determinação, tentei me mover de novo. Meu corpo enfraquecido pela falta de alimento não encontrou forças para virar ou se mexer. Minha garganta parecia cheia de areia pela falta de água, e quando fiz um esforço maior em me inclinar, uma tontura mortal me acometeu, e tudo ficou escuro outra vez.

Acordei.

Não sei por quanto tempo fiquei inconsciente depois do apagão, apenas que despertei com vozes alteradas e passos muito próximos. Desejei que fosse André com a cavalaria (sim, ele era um puta de um Caxias que não iria dar uma de justiceiro solitário como o idiota aqui).

Como num sonho, senti um toque nos cabelos. Reconheci o toque imediatamente. Ninguém tocava meus cabelos assim. Ninguém nunca tocara, e sentir aqueles dedos compridos alisando minha cabeça me transportou ao paraíso, ainda que todo o resto do corpo estivesse gritando de angústia.

— An... dré... — Não reconheci minha voz. Nem sei se falei ou só imaginei.

— Jeff... Puta merda! Já chamaram o socorro? — Ouvi sua voz elevada; falava com alguém, não comigo.

— Está a caminho — a resposta veio da esquerda. Tentei mais uma vez abrir os olhos.

As mãos deixaram meu cabelo. Lamentei, mas então senti o movimento nos meus braços. André estava tentando me desamarrar. Quando finalmente conseguiu, quase pedi que ele colocasse as cordas de volta, porque a dor que subiu pelos meus membros foi tão mortal que desejei não ter braços.

— Ei... Consegue me ouvir? Jeff? Fala comigo, cara!

Havia um tom diferente na voz do André. Uma entoação que eu nunca tinha ouvido... Talvez apenas uma vez, quando ele me tirou do beco com a arma no queixo. Ele insistia numa resposta, em seu tom trêmulo de... Medo.

Ele estava com medo!

Eu não sabia que a divindade era dada a sentimentos tão frívolos como o medo!

— Estou... Bem. — Foi o que consegui dizer. Senti suas mãos içando meu corpo, apalpando, alisando, como quem tentava encontrar alguma coisa.

— Você foi baleado? — Ele espalmava meu peito agora.

Como sempre, ele não conseguia tirar as mãos de mim.

Sua pergunta me fez pensar na arma. Mais uma vez, tentei manter os olhos abertos, e alguns detalhes começaram a transitar, ainda como brumas, diante dos meus olhos. André estava ajoelhado ao meu lado. Adiante, o corpo de Thor ainda estava imóvel no chão; dois pares de pernas transitavam no ambiente, e um moleque jovem, talvez adolescente, me olhava assustado da parede dos fundos. Estava algemado e, quando notei que chorava, me dei conta de que minhas vistas estavam enxergando novamente. Desviei os olhos para o André.

— Você me encontrou... De novo...

— Jeff...

— Eu escolhi você, André... — Porra, minha voz estava esquisita e doía falar, mas eu precisava dizer a ele.

— O quê?

— Eu escolhi você. Os dois estavam no tampo do balcão, mas eu te escolhi...

— Não entendi... Do que você tá falando? Melhor esperar os médicos...

— Eu escolhi você ao invés da bebida.

Ele ficou me encarando por um tempo. Notei seus olhos úmidos e, quando respondeu, sua voz estava meio embargada.

— Eu te amo, cara.

Fiquei um tempo apreciando o som daquelas palavras. Elas foram entrando em mim como um raio de sol, iluminando meus recônditos mais escuros e encardidos.

— Eu acredito em você — foi o que saiu. Mais tarde, resolveria esse lance com ele. De preferência sob lençóis, por baixo ou por cima, tanto faz.

— Detetive... — Um dos policiais roubou o André de mim, e pude ver quando foram até uma porta oculta por trás de uns pallets de madeira apodrecida, apoiados num dos cantos mais escuros do espaço. A pouca luz desfavorecia a visão daquele local, e notei que era proposital.

Eles afastaram as madeiras enquanto outro policial escoltava o rapaz amedrontado escada acima. O agente falava pelo rádio com alguém fora do prédio. Voltei a olhar pro André, eles tinham conseguido abrir a porta, e o policial entrou por ela.

Percebi algo embaixo da minha perna quando tentei ajeitar o corpo. Estiquei a mão e senti na ponta dos dedos o frio metal da arma que Thor havia enfiado em minha boca. Estiquei-me e recuperei a pistola de baixo calibre; estava destravada, pronta para disparar.

Quando ergui os olhos de novo, André estava prostrado sobre o corpo de Thor, checando sua jugular. Ele não havia reparado num vulto que se movia pelas sombras do espaço. Eu só tive tempo de identificar o brilho do metal perto da nuca do André. O sujeito silencioso estava pronto a atirar, e se eu tentasse alertar o André, seria tarde demais. Minha vista estava turva, mesmo assim, mesmo correndo o risco de acertar o André, eu mirei.

Nessa hora, eu quase ri do clichê. Finalmente, uma cena de filme de ação, em toda a sua improbabilidade, bem diante dos meus olhos. Se eu saísse vivo dessa, a ironia de eu ter uma arma na mão, pronta a decidir quem vive e quem morre, me daria boas histórias para a posteridade.

Um tiro ecoou no salão. Um brilho, a pontada de um ruído que invadia os tímpanos conscientes, e mais um corpo no chão. 

Improvável (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora