Jeff
Eu estava num banco de bar.
Sim, mereço todos os seus xingamentos. Sou um grande filho da puta.
Muitos nunca vão entender por que caras como eu tomam essas decisões. Talvez seja algo inevitável, ou apenas o reflexo do quanto somos fracos e incapazes. Sempre existiram os inabaláveis, como o André, e sempre houve gente como eu, incapazes em gerir as emoções. Ficamos parados só aguardando a bomba do descontrole nos atingir com tudo, bem no meio do peito, e usamos isso de desculpa para continuar recaindo, dia após dia, no mesmo lamaçal de merda emocional.
Eu queria ser como o André. De verdade. Queria ter um fiapo da força e determinação daquele cara, e ele nem podia imaginar o quanto eu o admirava, porque graças à minha covardia, eu não consegui dizer a ele.
Ele estava me bagunçando por dentro, como alguém que chega numa casa velha e começa a afastar os móveis para limpar. Quando eu disse a ele que ele estava me curando, não era mentira. Quando o senti dentro de mim, percebi o que era me tornar uma só pessoa com outra, e o quanto isso podia me tornar melhor, mais forte, inteiro outra vez.
Mas, como sempre, de uma hora para outra, eu senti falta de coisas.
Senti falta do álcool, e não me considerei pronto a dar a porra de um passo certo.
Senti medo do abandono, e achei melhor estar sozinho.
Senti falta da dor, porque a dor era a minha sentença por tudo o que já fiz de errado na vida.
Sim, a culpa é o pior dos gatilhos.
Talvez seja necessário saberem algo sobre mim para me entenderem um pouco melhor. Na fatídica operação policial que resultou na morte de três pessoas e no meu afastamento da corporação, eu deveria ser o agente em comando. Eu estava atuando como investigador chefe naquela ofensiva, e deveria estar encabeçando a situação.
Cardoso, um dos policiais, era meu principal colaborador. Jovem, casado, pai de gêmeos: Lorenzo e Leonardo, ambos com dois aninhos, igual à Larah. Ele percebeu que eu havia ingerido álcool quando conversamos um pouco na viatura, e pediu que eu repassasse as informações das rotas de fuga do prédio que seria invadido, mas minha mente estava embotada. Não me lembrei de uma passagem específica, uma segunda escada de incêndio que dava para os fundos da edificação.
Era para eu entrar na frente e comandar o grupo, mas ele me convenceu de que eu deveria ficar no carro. Disse que seria melhor coordenar pelo rádio, e naquele momento, achei coerente, só depois, percebi que não faria sentido. Eu realmente não estava em condições de conduzir nada.
Cardoso foi o primeiro a entrar no prédio, e o primeiro a ser alvejado. Sim, era uma emboscada, mas se eu tivesse me lembrado da escada de incêndio, teria percorrido o perímetro e conferido aquele ponto de entrada. Os bandidos que vigiavam as outras entradas haviam sido neutralizados, menos esse, e Cardoso foi morto com um tiro na cabeça, disparado por um moleque de dezesseis anos.
O moleque morreu logo depois, não sem antes disparar mais um tiro, que pegou num policial novato que estava fazendo sua primeira batida policial. Esse morreu a caminho do hospital. O saldo? Três mortos e um responsável, que matou sem usar uma arma porque estava bêbado.
Foram muitas merdas pelas quais passei. Muitas. Mas mereci todas elas. E agora, com um copo diante de mim, estava prestes a cometer mais uma.
Fechei meus olhos e ele veio à minha mente. Seus olhos escuros estavam frios quando se afastou pela manhã. Ele havia sugerido que eu fosse morar com ele, e como tudo o que fazia, ele era perfeito, cuidadoso, amoroso...
Talvez ele me amasse. Era a única explicação para o que fazia por mim. Eu queria tanto me deixar ser amado... Sempre que me afastava, sentia sua falta, quase como sentia falta do álcool. Talvez mais.
Sim... Mais. Definitivamente mais.
O que eu estava fazendo nessa porra de bar?
O copo me encarava. Já fazia um bom tempo que eu o encarava de volta. Antes de entrar nesse bar, caminhei por um par de horas até as imediações da estação de trem. Ao invés de embarcar, desviei e entrei no estabelecimento de aspecto ensebado, e ali fiquei, pensando no André.
Eu devia ter dito a ele. Devia ter revelado que estava apaixonado. Só de pensar nele, meu corpo se aquecia e meu coração batia mais rápido, e eu...
Meu aparelho vibrou no bolso. Conferi a tela e o nome dele apareceu como se eu tivesse conjurado sua atenção. Não sei quantas vezes ele já tinha ligado ao longo do dia.
Olhei para o copo.
Olhei para a tela.
Coloquei ambos, lado a lado sobre o balcão. Eu olhava os objetos, e fragmentos de conversa me assolaram a mente, cada frase, cada sinal que André havia dado.
"Não posso te agradecer por fazer um buraco do tamanho do universo no meu peito."
"Não te considero um desperdício."
"Por que você não consegue acreditar que eu gosto de você?"
"Eu queria que você não fosse tão complicado."
"Você já se apaixonou, Jeff? (...) Quando acontecer com você, talvez reconheça isso em outra pessoa."
"Você poderia vir morar comigo..."
Quando percebi, uma lágrima havia escapado e escorrido até meus lábios. Senti seu gosto salgado na boca e balancei a cabeça como que para espantar a avalanche de lembranças.
"Se você pedisse para eu pular fora, eu pularia."
Eu basicamente fiz isso essa manhã. Dei as costas para o que ele oferecia, saí pisando duro, mais uma vez, e sei lá quantas vezes eu feriria de novo quem tentava curar minhas feridas.
Quando um cão entende que não precisa morder o veterinário que trata seus machucados?
Que ironia eu ter sido costurado por uma veterinária!
Respirei fundo, olhei mais uma vez para o copo e o celular, e estendi minha mão. Quando estava prestes a me apossar da minha escolha, um par de braços alcançou os objetos e os afastou do meu alcance. Na hora, não olhei para o rosto do barman que havia feito isso, pois meus olhos estavam fixos num de seus braços, onde havia uma tatuagem:
Uma reprodução em blackwork da obra "A Persistência da Memória", de Salvador Dali.
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Improvável (Romance Gay)
Romance🌈 Romance Gay 🥉TOP 3 NA CATEGORIA "ROMANCE LGBTQIA+" - 3ª Ed.CONCURSO CÓSMICO 2024 🥇 #1 romancegay (Jun2024) 🥇 #1 sensual (Mai2024) 🥇 #1 homoerótico (Abr2024) 🥇 #1 autodescoberta (Abr2024) 🥇 #1 policial (Set2024) 🥈 #2 novos (Abr2024) 🥈 #2...