III

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Giselle estava na cozinha fumando, do seu maço de cigarros que escondia dentro da gaveta de seu criado mudo. O pegava apenas quando passava por uma situação de estresse que desencadeava em alguma crise de ansiedade muito forte. Aquela havia sido.
Não sabia se conseguiria encarar seu marido novamente, pois, depois de toda aquela situação, ele poderia se tornar mais imprevisível do que nunca. Óbvio que existia a chance de nem sequer lembrar mais do ocorrido, já que estava bêbado a todo momento, mas não poderia arriscar.
Estava pensando em se divorciar. Foda-se se tudo der errado e ela tiver que morar em outro lugar, não se importava mais. Mas quem é o errado da história?

"Óbvio que eu vou ficar com a casa, já que ele nem sequer ajuda nas contas".

Isso era verdade, e poder enxergar isso agora depois de tanto tempo era animador.

"De qualquer forma, se eu tivesse pensado nisso antes, ainda não teria tido coragem de seguir em frente".

Também era verdade.
Sentia que poderia recomeçar sua vida, agora que sentia coragem e determinação para isso. Se não pudesse ficar com a casa talvez seria até melhor, pois teria a oportunidade de viajar para longe e nunca mais pisar perto do lugar que tanto lhe trouxe sofrimento. Não podia culpar o lugar, óbvio, mas as lembranças que guardaria dele se resumiria a tristeza e violência, e certamente não desejava continuar ali. Estava empolgada, por mais que assustada. Não se sentia animada com seu futuro há anos, o que fazia com que aquela sensação lhe parecesse inédita. Seu marido nunca mais poderia lhe causar mal, e se tentasse, se arrependeria imediatamente. Giselle estava livre, e aquilo era maravilhoso e assustador ao mesmo tempo.
Ouviu a porta abrir. Sentiu seu corpo gelar e começar a tremer. Uma vontade incontrolável de fugir se apossou dela. "Se pelo menos eu tivesse me trocado!". Não teve outra escolha a não ser suportar mais uma situação desagradável.

"É a última. Ele nunca mais vai poder encostar um dedo em mim".

Estranhava o fato de Guilherme ter voltado tão cedo; talvez tivesse se distraído ao ponto de horas se parecerem minutos? Não, o sol estava alto, ainda era cedo. Mas por quê? Havia esquecido algo ou já estava bêbado e veio descontar tudo que ela dissera no dia anterior? Ao pensar isso sentiu um medo avassalador. Vai ser a última, mas vai ser a pior. Iria apanhar mais do que nunca. Quem sabe até morresse?

- Giselle?

Ouviu a voz vindo da sala. Parecia limpa, o que era estranho. Não demorou para que ele a encontrasse; estava em uma posição ereta, com os olhos um pouco vermelhos, não de embriaguez, mas sim de cansaço. Sua forma de andar, olhar e agir estavam normais e nenhum cheiro de álcool subiu de sua boca. Estava sóbrio.
Como? O que aconteceu? Em todas as vezes durante todos esses anos que ele saía de casa, voltava bêbado. Por que agora era diferente? Havia algo de suspeito nisso, só não conseguia saber se era algo ruim ou não.

Ao chegar na cozinha, Guilherme pôde ver sua esposa no canto do local, segurando um cigarro entre os dedos e o encarando. Estava magra até demais, e as olheiras contribuíram para a aparência cansada e destruída. "Não devo estar muito diferente", pensou. Notou que as mãos dela tremiam, o que confirmava o terror que sentia por ele. O amor que outrora tomou conta dos dois havia sido extinto há muito tempo e agora parecia apenas um leve e momentâneo gosto doce em toda sua amarga vida.
Deu um passo e a viu recuar. O simples gesto de se aproximar era como o fim do mundo para ela. Não podia culpá-la.

- Giselle, por favor, vamos conversar.
O rosto que via foi de uma expressão séria (escondendo tudo que sentia) para uma mistura de medo e confusão.

- Não tenho nada para conversar com você  - Respondeu, finalmente.

- Vamos, meu amor, por favor, não estou bêbado, posso ter uma conversa lúcida depois de anos.

- Por que eu iria querer isso?

- Só me dê uma chance.

Sabia que aquilo não seria fácil.

- Lhe dei chances por anos e sempre me arrependi. Por que seria diferente agora?

- Porque agora eu posso ver.

- Que bom que não é cego.

- Não mais, mas eu fui. Não consegui ver o peso das coisas e as merdas que eu fiz. – Giselle franziu o cenho. – Por favor, vamos conversar.

- Tudo bem. – Disse, apagando o cigarro.

- Ficarei até longe de você, para que não sinta medo.

Guilherme puxou uma cadeira em uma das pontas da mesa e se sentou. Giselle fez o mesmo, na outra ponta. Viu que ela evitava encostar na mesa e mudava de posição constantemente, exalando desconforto.

- Eu sei que você acha que tudo o que aconteceu ontem poderia me deixar mais maluco do que estou. E poderia, se você não tivesse me escolhas expulsado hoje cedo.

- O que isso tem a ver?

- Se você tivesse me deixado ficar, com certeza teríamos brigado. Eu estava confuso e com ressaca, ainda estava um pouco bêbado e minha mente estava uma bagunça tão grande que não pararia nem para lembrar do que aconteceu.

- Hum.

- Mas como você me expulsou, pode refletir. Giselle, meu amor, se é que ainda posso lhe chamar assim, eu pude ver o verme desprezível que a bebida me transformou. Pude ver toda a merda que fiz com você e com o Oliver e o quanto isso destruiu suas vidas. Eu sei, eu sei, eu sei, é tarde e nunca vou poder desfazer o que foi feito, mas me dê mais uma chance, por favor.

- Falar sempre é fácil, Guilherme.

- Eu sei disso, então por favor me ajude. Eu quero mudar, quero poder ser uma pessoa diferente, quero sentir controle sobre mim mesmo, quero recomeçar minha vida e fazer as coisas que eu desejava antes que seja tarde. Pode descontar tudo o que guardou em todos esses anos, cumprirei com todas as punições que eu tiver que cumprir de cabeça erguida.

- Não existe punição justa para tudo o que você fez e você sabe disso.

- Sei, pelo menos em relação às mundanas. Mas sei que quando eu morrer não terei um lugar reservado no céu, pois existem infinitas outras pessoas que merecem aquela vaga mais do que eu. Sofrerei minha pena pelo resto da eternidade, mas enquanto isso não me chega, por favor, me ajude a sofrer tudo isso sabendo que fui diferente ao menos no final.

Giselle ficou quieta. Seu coração estava a mil e não sabia o que poderia esperar. Uma grande parte sua dizia que jamais poderia ser capaz de conquistar o amor que há tanto não acordava, mas outra, mesmo que pequena, lhe dizia que havia esperança.

- Posso tentar.

Aquelas palavras lhe soaram como um canto angelical. Sim, ainda não era tarde, poderia provar que o homem que ela tanto amou ainda estava ali, mesmo que escondido em meio às trevas. Sentiu aquele homem enxergar a luz que tanto esperou.

- Ah Giselle, obrigado, obrigado e obrigado. – disse, chorando. – Eu não vou lhe decepcionar dessa vez. Oh Deus, poderoso Deus, como eu te amo! Como pude perder esse amor? Como que fui capaz de trocar isso por algo tão fútil e diabólico?

- Você está parecendo um poeta romântico.

Deu umas risadinhas e se pôs a chorar de novo, mais forte e intensamente do que antes. Giselle, pensando várias vezes, se levantou. Esperava tudo, tudo menos aquilo. Um arrependimento tão profundo como aquele era a última coisa que ela imaginaria que aconteceria. Não sabia bem o que fazer, nem o que pensar ou achar. Foi meio como um instinto, pois se levantou sem que se desse conta. insegura e ainda receosa, puxou a mão dele fazendo com que se levantasse, e o abraçou.
O primeiro abraço depois de décadas.
Guilherme continuou abraçado a ela por alguns minutos, em meio a soluços e choros. Giselle notou que a frequência dos soluços estava aumentando a ponto de se transformarem em tosses. Após algum tempo naquela situação confortável e constrangedora, Guilherme se desprendeu de seus braços, com um sorriso.

- Ah Giselle, eu...

Tossiu. E dessa vez a tosse veio acompanhada de sangue. Giselle se assustou e, antes que pudesse fazer qualquer coisa ou reagir de qualquer forma, viu seu marido perder a consciência e cair no chão. Ela correu para perto dele, desesperada, mas não obteve resposta.

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