VI

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(alerta de gatilhos e conteúdo sensível; não aconselhável a leitores que estejam em momentos delicados ou com a saúde mental debilitada).

O dia parecia mais quente que o normal, na verdade parecia escaldante, e mesmo assim seu corpo tremia. Não era frio, não era medo, talvez fosse uma grande mistura de sentimentos tão complexa que nenhum de nós poderia explicar. Oliver já não processava as coisas tão bem. Estava chorando ainda, com os olhos já inchados pelo tempo que ficou desta maneira. Deu voltas lentas e cambaleantes pela casa, à fim de procurar algo que tornasse seu objetivo possível. Estava com a constante sensação de estar em um ambiente com uma luz extremamente forte, que fazia sua mente desmanchar aos poucos. Era uma sensação estranha, e parecida com o que podemos sentir ao sair de um lugar escuro que estávamos há muito tempo e nos deslocarmos para o lado de fora, onde é claro e espaçoso. Nossa mente demora um pouco para processar tudo, e o grande clarão que não víamos há horas é como uma onda cegante que ofusca tudo ao nosso redor, incluindo nossa capacidade de pensar, por alguns momentos. É bastante parecido com o que Platão descrevia em relação ao que sentiríamos ao sair da caverna, mas no caso de Oliver, ele não saiu para descobrir a verdade e se libertar, mas sim para encontrar sua ruína.
Entrou na cozinha, onde as coisas se encontravam bastante sujas. Claro, em meio a tudo que acontecia nos últimos dias, separar um tempo para limpar a casa se tornou algo fútil e esquecível, o que é justo. Laura costumava sempre obrigar Oliver a ajudá-la nas faxinas, pois segundo ela, “quando eu morava sozinha, não precisava ficar limpando todos os dias, já que eu não sujava tanto. Mas com você aqui parece que a casa é virada de cabeça pra baixo a cada dois dias!”. Ele não gostava, mas obedecia, já que estava ali apenas por que ela permitiu, e o mínimo que poderia fazer para retribuir era ajudar. Mas agora que ela não estava ali, que sentido teria em fazer essas tarefas diárias? Isso realmente importava? Sujeira não mata ninguém, era o que ele pensava. A atenção que a sujeira recebeu dessa vez não foi diferente, pois Oliver, ao entrar e ver todos aqueles pratos, talheres e canecas sujas na louça, juntamente com caixas e restos de comida por toda a parte, não fez nada a não ser ignorar. O que ele estava procurando ali na verdade era uma faca, mais especificamente um facão. Talvez desse certo com ele, mas sua mente logo mudou de opinião ao imaginar a dor que sentiria e o lento processo que seria até que chegasse onde queria. Sim, logo acabaria, mas não significava que precisava ser tão torturante. Ele já tinha sofrido demais.
Deu meia volta, sem saber realmente para onde ir. O que lhe restava? Bom  na realidade existem muitas formas de cometer tal ato, mas não quer dizer que sejam fáceis. Coragem Oliver tinha, ou achava que tinha, mas como faria? Logo soube, e não seria tão difícil. A mistura de sentimentos de tudo que lhe ocorreu durante sua vida inteira queimava em seu âmago. As brigas familiares se juntavam com a dor da perda de seu amor, o que resultava em um ciclo de dor que alternava, sem descanso, entre as duas causas, lhe trazendo memórias ruins e pensamentos futuros maravilhosos que poderiam ter acontecido se o mundo não fosse tão injusto. Antes de fazer o que pretendia, por algum motivo resolveu ligar para seu pai. As lembranças ruins que apareciam em sua mente causavam um grande contraste com as palavras que ouviu no cemitério, e isso resultava em uma sensação, mesmo que morna, de empatia pelo homem. Empatia talvez fosse uma palavra forte, já que aquele monstro não merecia nada além de desprezo e ódio; mas de qualquer forma algo se mexia dentro de Oliver, algo diferente do que ele sentiu em toda sua vida. Aquelas palavras proferidas naquele ambiente mórbido eram, ironicamente, vivas e pulsantes dentro dele, mas até então nunca havia dado importância para isso. Essas palavras e esse sentimento estranho que o obrigaram a ligar para seu pai. Iria morrer mesmo, qual seria a diferença? Pelo menos uma atitude legal ele poderia fazer antes de ir. Pegou o celular que se encontrava jogado de qualquer jeito no sofá da sala de estar, e digitou o número, que não sabia como, mas lembrava de cor.
O telefone tocava e o medo no coração de Oliver crescia. Não sabia se realmente queria ouvir mais uma vez aquela voz. Não sabia nem se conseguiria dizer alguma coisa, já que não parava de chorar. Notou pela primeira vez em dias que estava fedendo; desde quanto tempo não tomava banho? Não sabia dizer, pois os dias e as horas estavam tão confusas que não passavam de borrões em sua mente. Não sabia que dia era hoje e nem se ainda era o mesmo mês desde o desastre.  Aquilo parecia, ao mesmo tempo algo que ocorreu há anos, como algo que aconteceu ontem. O telefone continuava a tocar; a cada barulhinho de chamada que ele fazia, era um calafrio no seu corpo. Há quanto tempo estava ali parado? Pareciam horas. Sabia que não se passou tanto tempo apenas por ver o céu brilhar por trás das cortinas de suas janelas, mas não significava que estava ali por poucos minutos. O telefone subitamente parou de tocar. Um silêncio mortal tomou conta dos dois lados da ligação, mas logo uma voz se mostrou.

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