Capítulo 1

2.4K 204 49
                                    


Está chovendo enquanto o caixão da minha esposa está descendo num buraco no chão. Chovendo forte, como se o próprio céu estivesse prestes a se rasgar ao meio como o meu coração.

Fico imóvel sob um guarda-chuva com os outros enlutados, ouvindo o padre tagarelar sobre ressurreição e glória, bênçãos e sofrimento, redenção e o santo amor de Deus. Tantas palavras, e todas tão sem sentido.

Tudo é sem sentido. Há um buraco no formato de Jane no meu peito e nada mais importa.

Deve ser por isso que me sinto tão entorpecida. Estou vazia. A dor me despedaçou, espalhando meus ossos em um deserto, onde eles vão assar em silêncio sob um sol impiedoso por mil anos.

Uma mulher atrás de mim chora baixinho em seu lenço. Sharon? Karen? Uma colega de Jane que conheci em uma festa da faculdade há muito tempo. Uma daquelas horríveis festas de fim de ano no auditório da escola onde servem vinho barato em copos de plástico e as pessoas ficam em volta, conversando constrangedoramente até ficarem bêbadas o suficiente para dizer o que realmente pensam umas das outras.

Sharon ou Karen atrás de mim disse a Jane que ela era uma idiota naquela festa. Não consigo lembrar o porquê, mas provavelmente é por isso que ela está chorando agora. Quando alguém morre, você começa a contar todas as maneiras com que falhou com eles.

O padre faz o sinal da cruz sobre o peito. Ele fecha a bíblia e dá um passo para trás. Ando devagar para frente, abaixo-me para pegar um punhado de terra da pilha ao lado, depois o jogo no caixão fechado.

O amontoado de terra molhada faz um som oco feio quando chega na tampa cinza do caixão, um respingo indiferente de finalidade. Em seguida, ele desliza, deixando uma mancha marrom para trás como uma mancha de merda.

De repente, estou tremendo de raiva. Sinto gosto de cinzas e amargura na boca.

Que ritual estúpido é esse. Por que nos incomodamos? Não é como se os mortos pudessem nos ver chorando por eles. Eles foram embora.

Uma súbita rajada de vento frio sacode as folhas das árvores. Eu me viro e vou embora pela chuva, sem olhar para trás quando alguém soluça baixinho meu nome

Preciso ficar sozinha com a minha dor. Não sou uma daquelas pessoas que gostam de lamentar uma tragédia. Especialmente quando a tragédia é minha.

Quando abro a porta da frente de casa, demoro um pouco para perceber que estou em casa. Não me lembro do caminho do túmulo até aqui, embora o ponto em branco no tempo não me surpreenda. Desde o acidente, tenho estado em um nevoeiro. É como se meu cérebro estivesse coberto por nuvens grossas.

Li em algum lugar que o luto é mais do que uma emoção. É uma experiência física também. Todos os tipos de substâncias químicas desagradáveis do estresse são liberados na corrente sanguínea quando uma pessoa está de luto. Fadiga, náuseas, dores de cabeça, tonturas, aversão alimentar, insônia... A lista de efeitos colaterais é longa.

Tenho todas elas.

Chuto meus sapatos e os deixo embaixo da mesa de canto, na entrada. Jogando meu casaco de lã nas costas de uma cadeira da cozinha, vou até a geladeira. Abro a porta e fico olhando para dentro enquanto a chuva bate contra as vidraças e tento me convencer de que estou com fome.

Eu não estou. Sei que deveria comer para manter as forças, mas não tenho apetite para nada. Deixo a porta se fechar e aperto meus dedos contra minhas têmporas latejantes.

Outra dor de cabeça. Essa é a quinta esta semana.

Quando me viro, noto o envelope na mesa ao lado da fruteira. Parado lá, um retângulo branco com caligrafia elegante e um selo que diz "AMOR" em letras vermelhas.

Reencontro de almasOnde histórias criam vida. Descubra agora