A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro é uma instituição cujo objetivo é prestar assistência a todas as pessoas em situação de vulnerabilidade, além de estar comprometida com a promoção dos direitos humanos. O Rafael era uma dessas pessoas – o pai foi tragicamente assassinado, à luz do dia, em um bairro nobre do Rio de Janeiro, após ser erroneamente confundido com um traficante por um policial militar à paisana. À época, o caso causou comoção nacional; os policiais envolvidos foram exonerados e, depois de muita pressão de ativistas pelos direitos humanos, presos. A mãe dele, Isabel, jamais se recuperou de perder o marido e ter que criar, sozinha, o filho. Sei disso porque fui eu quem atuei junto à defensoria pública para solicitar indenização àquela família – dinheiro que, apesar de não curar a dor de perder o marido tão precocemente e ver sua família ser desfeita, ajudou que aquela mulher se reerguesse.
A história do Rafael, porém, não teria um final feliz; hoje, ao ver o seu caixão descer e a terra ser jogada em cima, e ouvir os gritos de dor seguido do choro de sua mãe, percebo que alguns nascem, mesmo, para sofrer. Rafael, aos dezesseis anos, havia sido vítima de bala perdida durante uma ação policial do BOPE, a força de operações policiais da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Era oito da noite, e ele retornava do cursinho popular que frequentava na comunidade ao ser atingido. Morreu em uma rua escura, sozinho, sequer resistindo à chegada do socorro. Seu corpo fora encontrado por moradores.
Apesar de ser fevereiro, o mês mais quente no Rio, hoje chove. Isabel mais cedo me dissera que a chuva era presságio: era lágrimas de Iemanjá.
– São lágrimas pelos negros. Pelo meu filho, Fernanda, ainda cheio de ideias, de sonhos. – ela lamentara, atordoada.
Após a cova ser fechada, Isabel, apesar de ser umbandista, pede que, juntos, rezemos um pai-nosso e, depois, uma ave-maria. Lembro-me das escassas vezes em que, a pedido da minha mãe ou avó, vou à missa, e rezo. Rezo para que Rafael, onde quer que esteja, fique bem. Abro os olhos e, então, vejo que até mesmo alguns dos poucos jornalistas que lá estão, também participam daquele momento de oração. A presença da imprensa não é espanto algum, afinal, um jovem, cujo pai fora assassinado pela polícia, recebera o mesmo destino. Isso renderia uma reportagem e tanto.
Embora eu tenha vindo extraoficialmente, para prestar apoio e solidariedade à Isabel, que fora assistida por mim na defensoria após a morte do marido, e de quem me tornei amiga ao longo do tempo, ao final a chamo.
– Isabel, eu soube que instauraram um processo administrativo. O Ministério Público também foi notificado para verificar se houve abuso ou negligência. – digo, apertando minha mão sobre a dela. – O que faremos agora é esperar. Vou falar com meu chefe na defensoria, mas eu prometo que, juntas, conseguiremos justiça.
– Não sei nem se tenho forças para isso mais, Fernanda. Aqueles policiais mataram o meu filho! – ela protesta.
– Juntas, ouviu? Estou aqui com você. Sei que você consegue. – eu a consolo e, em seguida, me despeço.
Quando ela vai embora, sou abordada pelo Vicente. Eu não tinha o visto. Nós nos conhecemos desde a faculdade – quando eu me dividia entre os estudos e um estágio no Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro e me virava com um salário de estagiária, e ele, já formado, trabalhava na redação de um canal de televisão. Nós tivemos nosso casinho, era inevitável: Vicente era bonito. Alto, moreno, do tipo atlético sem ser bombado. Saímos algumas vezes, mas preferimos continuar como amigos que, eventualmente, transam. Um tempo depois, porém, eu conheci o Leonardo e começamos a namorar. Fui sincera e disse que não nos veríamos mais por isso; ele aceitou, para o nosso próprio bem, e mantivemos um relacionamento amistoso, apesar de não nos vermos há alguns anos.
– Fernanda? – ele chama e eu me viro. – Ei, sumida. Sou eu. – ele está com um crachá que o identifica como jornalista, portanto, sei que não é coincidência alguma ele estar aqui.
– Vicente. Quanto tempo. – cumprimento com um aceno. – Se você veio para uma entrevista, eu vim extraoficialmente.
– E então, você e essa sua mania de salvar o mundo, né? – ele ri. – Sei que você atuou no caso do pai do garoto, morto por um PM há uns cinco anos.
– É uma tragédia, só isso. O Rafael era muito jovem. Queria ser advogado. – falo, secamente, apertando as chaves do carro na mão. A morte do Rafael me impactara muito, afinal, eu o acompanhei crescer.
Vicente assente e me convida para um café, mas recuso. Ele, porém, me acompanha até o carro. Trocamos amenidades, falo do rompimento do meu noivado com o Leonardo e ele diz que sente muito. Apesar de ser recente, não sinto tanto o peso desse término, afinal, ele quem me traiu. Quando se trabalha quarenta horas semanais como eu, sobra pouco tempo para lamentações. Tentei perdoá-lo e seguir em frente, em nome de seis anos de relacionamento, mas não dávamos mais certo e terminamos.
– De qualquer forma, você sabe quem autorizou a operação na comunidade, não sabe? – ele pergunta e eu confirmo. Ele. Roberto Nascimento. – O secretário de segurança pediu para que a operação fosse suspensa, estava muito próximo à escola, mas a ordem, aparentemente, não chegou. O capitão agiu por conta própria.
– O Capitão Nascimento é truculento, violento e comete muitos excessos nas suas operações. Eu não sei, Vicente, como ele ainda não foi exonerado do cargo. – afirmo e dou as costas, entrando no carro.
Capitão Nascimento era policial do BOPE há quase dez anos, se me lembro bem. Pessoalmente nunca havíamos nos encontrado, mas sua fama o precedia. Ele cometia muitos excessos: tortura, ameaça, violação de direitos, mas, apesar disso, era visto como herói pela mídia, mesmo com a pilha de inquéritos que ele acumulava. Eu soubera, pelo meu chefe, que fora ele quem autorizara a operação policial próximo ao cursinho popular. Fora ele que, mesmo que indiretamente, puxara o gatilho que matou um adolescente inocente. E eu estava determinada a, por meio do meu cargo na defensoria pública, conseguir, de alguma forma, justiça.
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As duas faces da justiça
RomanceFernanda Mourão é advogada e trabalha na Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro em prol dos direitos de populações vulnerabilizadas, dedicando sua vida ao trabalho e à luta contra os abusos de poder cometidos em comunidades carentes. Após a...