Quando chego à guarita, meu carro tem um problema. Retiro a chave da ignição e dou a partida novamente, mas nada. Repito esse processo mais duas vezes até desistir. Abaixo a cabeça sobre o volante e xingo baixinho. Olho para o meu smartwatch e vejo que é meio-dia. Às duas da tarde, tenho uma audiência no Tribunal de Justiça e, antes, preciso passar na Defensoria para pegar a papelada, almoçar e trocar de roupa – não tem a mínima possibilidade de eu ir a uma audiência de jeans e tênis. Vejo, pelo retrovisor esquerdo, um dos policiais que está vigiando a saída se aproximando do carro, um fuzil enorme empunhado. O seu companheiro nos observa a alguns metros de nós. Ajeito a postura. Meu carro é seminovo, o comprei há uns bons três anos; portanto, sei que está suscetível a problemas. Eu notara, ultimamente, alguns problemas na partida, mas estava adiando até que tivesse tempo para levá-lo a alguém que entende. Não sabia que ele morreria justo agora.
– Problemas com o carro? – Ele pergunta, simpático. Leio em sua farda SD Prado, +A.
– Acho que é motor, não entendo muito. – Olho para o retrovisor novamente. – Não consigo sair daqui, desculpa.
– Só preciso que a senhora ligue o pisca-alerta. – Eu o faço. Ele sinaliza para o companheiro. – O soldado Rodrigues vai dar uma olhada para a senhora.
Eu agradeço. Por que não podia ser um pneu furado? Eu conseguiria resolver. Continuo no carro, nervosa com o horário. O soldado Rodrigues, mais novo que o primeiro, abre o capô do carro, observa por algum tempo e pede que eu dê partida novamente. Nada. Ele balança a cabeça negativamente para o soldado Prado e fecha o capô. Os dois trocam algumas palavras e, em seguida, o mais novo diz, preocupado:
– Parece que o motor está superaquecendo. Se a senhora não levar em um mecânico logo, o motor pode fundir, e não é nada barato.
Concordo com a cabeça.
– Agradeço por olharem, de qualquer maneira. Vou ligar para o seguro e solicitar um guincho. – Falo, pegando meu celular.
Os dois se afastam e eu desço do carro, mas fico próxima a ele. Ao telefone, a atendente do seguro diz que a previsão para que o guincho chegue é de, aproximadamente, quarenta minutos, mas ressalta que pode haver atraso. Perfeito, penso. Eu só posso pedir um Uber depois que o guincho chegar e recolher o carro. Se a previsão é de quarenta minutos, isso significa que eu só chegarei na Defensoria por volta de uma da tarde, isso se não houver atraso. Agradeço a atendente e encerro a chamada. A minha única sorte, agora, é que a distância entre a Defensoria Pública e o Tribunal de Justiça é de cinco minutos; ambos estão localizados no Centro.
Entro novamente no carro, reunindo alguns dos meus pertences: minha bolsa, uma pasta com alguns documentos, a documentação do veículo e, por fim, meus óculos escuros. Enquanto espero, observo ao redor; de longe, pelo retrovisor, um Sentra preto sair da vaga de estacionamento rumo à saída. O meu carro está bloqueando a guarita de saída, portanto, o motorista terá que passar pela guarita de entrada que, no momento, está livre. O carro passa, devagar, alinhando-se ao lado do meu, apenas a alguns metros de distância; mesmo que o veículo esteja próximo, os vidros são escuros. Eu o encaro, intrigada. Nesse momento, o motorista desce o vidro do carona. É o Capitão Nascimento.
– Que azar, hein, doutora. – Ele diz, descontraído.
– Foi um problema no motor. – Falo. – O soldado Rodrigues olhou para mim. – Nesse momento, ele olha, pelo retrovisor direito, o soldado a alguns metros de distância, a arma ainda empunhada, – Acionei o seguro, mas a previsão para a chegada do guincho é de quarenta minutos.
– Para onde a senhora vai agora? – Pergunta, apenas uma das mãos sobre o volante. Reparo que, agora, ele usa roupas civis, casuais, e não a farda habitual.
VOCÊ ESTÁ LENDO
As duas faces da justiça
RomanceFernanda Mourão é advogada e trabalha na Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro em prol dos direitos de populações vulnerabilizadas, dedicando sua vida ao trabalho e à luta contra os abusos de poder cometidos em comunidades carentes. Após a...