Minha fala tirada de contexto repercutira na mídia. Hoje cedo, quando acordei, meu celular não parava de apitar com ligações perdidas e mensagens. Abri o primeiro link que me mandaram e a manchete já anunciava: Defensoria Pública do Rio de Janeiro quer exoneração de capitão do BOPE após adolescente ser vítima de bala perdida. Passei os olhos e rolei a página, até chegar em um trecho que dizia que, segundo a defensora pública do Estado do Rio de Janeiro, Fernanda Mourão, a defensoria tinha interesse em solicitar um processo de exoneração contra o capitão do BOPE Roberto Nascimento. Me lembrei, então, de Vicente. Claro. Eu tinha dito a ele, no dia anterior, após o enterro, que não sabia como o Nascimento ainda não tinha sido exonerado, mesmo com tantos processos acumulados por abuso de poder e violência. Mas o que eu dissera era extraoficial, para um conhecido, eu não tinha como saber que ele iria publicar. Agora, eu lidaria com as consequências, já que até o defensor público geral do Estado soubera da notícia.
À espera da chegada do defensor público geral do Estado, eu reviso os meus processos e tenho uma reunião com uma das assistidas. Há um mês, ela roubara um pacote de absorvente, um litro de leite e miojo e fora presa em flagrante no local após um dos seguranças chamar a polícia. Ela ficou privada de liberdade durante dez dias, mas conseguimos liberdade pelo princípio da insignificância. No Brasil, em caso de um furto simples, sem ameaça ou violência, em que há subtração de itens de pequeno valor, a jurisprudência entende que não é necessário punir o agente do crime. Porém, o Brasil da jurisprudência que nós, defensores públicos, estudamos durante a faculdade de direito, é muito diferente do Brasil real: quem comete o crime de ter a pele preta e não tem grana para pagar bons advogados é, sim, punido. Agora, lutávamos para recuperar a guarda dos seus filhos, já que, após sua prisão, as duas crianças de cinco e sete anos estavam em abrigos. Era esse o meu trabalho: lidar, todos os dias, com os efeitos da desigualdade, da pobreza e da falta de acesso a oportunidades; eu, porém, buscava reparar isso.
Após explicar a ela sua situação, da forma menos técnica possível, eu a encaminho para um CRAS, onde ela será atendida por uma assistente social, que a cadastrará em um programa de auxílio governamental. Por ora, é o que pode ser feito, mas sinto que não é o suficiente.
- Escuta. - digo, anotando um número de telefone em um post-it. - Recentemente, inauguraram um hospital próximo à Cidade Universitária, você conhece? - ela assente. - Perfeito. Ana, eu quero que você ligue nesse número. Estão contratando lactarista hospitalar. Pagam pouco mais de um salário-mínimo, mas oferecem alimentação no local e vale transporte. Nós precisamos que você se reestabeleça para recuperar as crianças, certo?
- Nossa, doutora. Eu nem sei como agradecer, mesmo. Pela ajuda, por tudo. Fico até sem jeito. Eu vou ligar lá hoje mesmo. - a mulher, talvez cinco anos mais jovem do que eu, sorri. Eu sorrio de volta.
E é assim que, aos poucos, eu tento, de dentro do sistema, mudá-lo um pouco. Após a saída dela, confiro o relógio e vou à sala de reunião do meu andar. Contenção de danos. Agora, eu me encontraria com o defensor público geral, minha chefe na Defensoria Pública, o Coronel do BOPE e o Comandante-Geral da PMERJ. Apesar de estar habituada a estar em uma sala só com homens - na minha turma de direito, na UFRJ, dentre cinquenta alunos, poucas eram mulheres - fico aliviada pela minha chefe, Raquel, estar lá. Era um ambiente machista. O que me fora informado, em linhas gerais, era que nossa conversa seria para conter os danos gerados - afinal, eu, na condição de servidora pública do Estado, atentei contra a imagem de um policial. Fazer aquela declaração, embora não tenha sido ilegal, era problemática, sobretudo agora, que a Polícia Militar do Estado tentava, a todo custo, limpar sua imagem de alguma forma. Uma espécie de rebranding, talvez. Tinham até perfil no TikTok e um estagiário para criação de conteúdo nas redes. Mesmo que o BOPE fosse, na prática, outra polícia - eram melhor treinados, bem pagos, tinham acesso a armamento especializado e, claro, usavam farda preta - ele ainda integrava a corporação.
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As duas faces da justiça
RomanceFernanda Mourão é advogada e trabalha na Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro em prol dos direitos de populações vulnerabilizadas, dedicando sua vida ao trabalho e à luta contra os abusos de poder cometidos em comunidades carentes. Após a...