Uma vez em casa, tranco a porta e jogo a bolsa sobre o sofá. Acendo as luzes e tiro os saltos, mal conseguindo me manter de pé. Sinto o ambiente claustrofóbico e, por isso, praticamente corro em direção à sacada, abrindo a porta até ela. Preciso respirar. Não acredito que isso está acontecendo. Estou com o meu celular em mãos, mas, até agora, não o desbloqueei, tamanha a minha covardia no momento.
Na sacada, apoiada sobre a grade, olho o movimento da rua por algum tempo: observo os carros, os transeuntes, o fluxo de entrada e saída de moradores do meu prédio. Fico assim durante muito tempo — sei disso porque vejo uma das minhas vizinhas sair com o cachorro e, algum tempo depois, retornar com ele e algumas sacolas de compra de supermercado. Observo um carro cujo modelo é o mesmo do dele — de Nascimento — passar pela rua, mas sei que não é ele pela cor — esse é prata — e sinto um aperto no peito. Culpa. Arrependimento. Ódio. Tudo isso me consome.
Crio coragem para desbloquear o celular. Eu o tiro do modo não perturbe e, no mesmo instante, aparecem centenas de notificações na tela do aparelho. Franzo o cenho ao ver que há três ligações perdidas da minha mãe, o que não é comum, e fico preocupada de imediato. Há duas ligações perdidas de Isabel. Quando passo para as mensagens, leio-as rapidamente: minha mãe mandou essa tarde que precisava falar comigo urgentemente, mas não adiantou o assunto, o que me deixa preocupada. Eu a respondo imediatamente e, em seguida, passo para as próximas mensagens. Isabel diz que um familiar enviou uma reportagem para ela e me pergunta se eu já sabia disso. Como ela não obteve resposta, mandou mais algumas mensagens após essa no decorrer da tarde. Não sei exatamente o porquê, mas eu esperava alguma mensagem dele, o que não recebi. Também há uma mensagem de Leonardo, que diz que precisa conversar comigo sobre o apartamento, assim como de Jordana, me convidando para o aniversário dela no fim de semana.
Respondo todas, exceto a de Isabel. Não sei o que dizer. Minha mãe também não me respondeu. Encaro a tela do celular por alguns instantes e, em seguida, eu o bloqueio. Além de ter que lidar com todos esses sentimentos, de repente, também fico preocupada com minha mãe. Ela não é de me ligar sem avisar antes. Como ainda não tive resposta, decido voltar para dentro do apartamento. Tomo um banho quente e demorado na tentativa de me recuperar desse dia e, ainda, de retirar qualquer resquício dele de mim — não quero sequer pensar nele, ou no nome dele. Enojada, me esfrego com mais força do que o habitual, até a minha pele doer.
Depois de me vestir, olho, novamente, o celular; assim que desbloqueio a tela, recebo uma mensagem da minha mãe. Ela pergunta se estou desocupada e se pode me ligar; eu confirmo. Sei que deveria preparar algo para comer, mas o meu estômago está embrulhado; não consigo sequer sentir fome no momento. Tudo o que quero, agora, é que esse dia acabe. O meu celular toca e eu o atendo; é minha mãe.
"Mãe?", pergunto. Ando de um lado para o outro pela cozinha; tenho o hábito terrível de andar enquanto converso ao telefone.
"Oi, filha. Tudo bem por aí?" Ela pergunta. Pelo tom da sua voz, desanimada, sei que ela não está bem. Tento imaginar o que é. Ela não tem o costume de acompanhar o noticiário e, diferente de mim, não gosta tanto do Rio de Janeiro. Também evito falar muito de trabalho com ela. Por isso, sei que o problema não é o que houve hoje cedo; talvez ela sequer saiba disso. Não vou mencionar isso por ora; quero manter minha sanidade.
"Estou bem. Só cansada." Minto. Não estou nada bem, mas, mesmo que eu conte a ela o que houve, não vai mudar nada. Vou continuar me sentindo péssima e, mais do que isso, vou preocupá-la, que é o que menos quero no momento. "Fiquei preocupada. O que houve? Está tudo bem por aí?" Brinco com um saleiro sobre a bancada da cozinha. Apesar de jovem e de ter muitos amigos, e suspeito que até um possível casinho, minha mãe mora sozinha; por isso, não posso evitar ficar preocupada.
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As duas faces da justiça
RomanceFernanda Mourão é advogada e trabalha na Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro em prol dos direitos de populações vulnerabilizadas, dedicando sua vida ao trabalho e à luta contra os abusos de poder cometidos em comunidades carentes. Após a...