O caminho até Botafogo nunca pareceu tão longo. Quando chega ao meu prédio, Nascimento estaciona do lado de fora; eu o espero na portaria e, poucos minutos depois, ele entra pelo portão de pedestres. No caminho para o saguão do prédio, tento preencher o silêncio, mas não temos absolutamente nada em comum, exceto o fato de que transamos. Não quero falar de trabalho. É irônico, até: não sei quase nada sobre a vida pessoal dele, mas estou, mais uma vez, prestes a dar para ele outra vez. Eu sequer tenho o hábito de chamá-lo pelo nome. Durante o trajeto do trabalho para cá, pensei que seria curta e grossa: chegaríamos, transaríamos e ele iria embora, mas, agora, o silêncio parece constrangedor.
— Não tá de serviço hoje? — Pergunto, tentando quebrar o gelo. Péssima escolha. É uma pergunta ridícula; como se o fato de ele não estar fardado e ter vindo comigo não denunciassem que ele está de folga. Sinto vontade de me estapear quando digo isso.
— Não. — Ele responde. — Vai pedir pro governador esquerdista me exonerar por não estar trabalhando? — Mesmo que seja uma uma provocação clara, ele ri, também tentando quebrar o gelo. Eu abafo uma risada, mas não o respondo.
Estou carregando duas bolsas e algumas pastas, além da chave do carro e do apartamento, e tento, em vão, equilibrar todos esses itens. Quando chegamos ao saguão, faço menção de apertar o botão do elevador, mas Nascimento é mais rápido do que eu. Ele olha para mim e, sem que eu peça, faz um gesto para que eu entregue as pastas a ele. Eu entrego.
— Obrigada. — Falo, apreciando o ato de gentileza. Nesse momento, o elevador chega. Ele faz um gesto para que eu entre primeiro.
— Tem muita coisa aqui. — Diz. Eu aceno com a cabeça. — Trabalho demais? — Pergunta.
Não quero falar sobre o meu trabalho agora, principalmente com ele, e não sei se é a frustração por não ter obtido sucesso na minha busca mais cedo ou o nervosismo por estar em um espaço tão apertado com ele tão próximo de mim, mas eu falo sobre o caso da Luísa, mesmo sabendo que não devo.
— Eu estou com uma assistida. — Começo, apertando o botão do meu andar. — Uma moça que foi presa no fim de semana no Galeão. Tráfico internacional de drogas.
— Quanto? — Ele pergunta, parecendo interessado. As portas do elevador se fecham.
— 8kg de cocaína. — Quando respondo, ele assobia, surpreso. — Pois é. O pior? Estava dentro de um urso de pelúcia.
— Criativo, mas burrice. — O apartamento chega até o meu andar e, mais uma vez, ele abre passagem para que eu saia primeiro.
— Extraoficial. Eu nem deveria falar disso com você. — Falo, olhando-o por sobre os ombros enquanto destranco a porta do apartamento. — Ela jura não saber de nada.
— Eles sempre têm uma desculpinha esfarrapada. — Ele diz. — Deixa eu adivinhar: você acredita nela.
— Estou tentando. — Eu, de repente, desconverso, percebendo que não deveria ter tocado no assunto. Falar de trabalho com ele não é uma zona neutra; uma hora ou outra entraremos em conflito. Entramos no apartamento e peço para que a Alexa acenda as luzes do apartamento. Quando as luzes se acendem, tranco a porta de entrada, deixando a chave na fechadura.
Coloco as bolsas sobre o sofá; ele faz o mesmo com as pastas. Nesse momento, ele parece muito diferente do homem que há menos de uma hora esteve na minha sala e do homem com quem há poucos dias transei nesse mesmo cômodo. Agora, ele parece mais relaxado, tranquilo, menos controlador — até piada ele fez, mesmo que tenha sido na tentativa de me provocar, o que interpreto como um bom presságio.
Eu me apoio na pilastra que divide a sala e a cozinha e, quando estou quase tirando os sapatos de salto, os dedos dele se detêm na pele do meu braço. Imediatamente sinto um choque elétrico.
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As duas faces da justiça
RomanceFernanda Mourão é advogada e trabalha na Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro em prol dos direitos de populações vulnerabilizadas, dedicando sua vida ao trabalho e à luta contra os abusos de poder cometidos em comunidades carentes. Após a...