No sábado de manhã, apesar de ter dormido mal mais uma noite, acordo disposta. Ontem à noite, depois dele ir embora, fiquei fritando na cama, agitada com o que acontecera. Quando consegui, enfim, dormir, eram quase duas da manhã. O pior foi ter sonhado com ele. Além de me sentir traída pelo meu próprio corpo, agora eu também me sinto traída pela minha mente. Na tentativa de tirá-lo da cabeça, resolvo a minha vida: vou à academia e, depois, ao beach tennis, que, ao longo das últimas semanas, foi negligenciado. Desde que ele saíra pela porta do meu apartamento, ele não apareceu mais, e eu preferia que fosse assim. Vicente, por sua vez, me mandou uma mensagem me convidando para sair de novo; eu não o respondi.
No beach tennis, a minha dupla de sempre é Jordana, uma amiga querida, que me atualiza sobre o seu trabalho como preparadora física do Flamengo — não o do Arrascaeta, mas sim o da Cristiane. Sempre tenho que corrigir esse detalhe quando comento, com algum amigo ou conhecido, sobre a profissão dela: ela trabalha com a equipe feminina. Isso, geralmente, é acompanhado de olhares de decepção. Não sou muito fã de futebol, mas a ouço. Ela também me conta que está saindo com uma mulher, que descubro conhecer por meio de Vicente, e eu, então, decido contar a ela sobre a noite passada com ele. Eu omito o que aconteceu depois que ele foi embora. Ela não me julga por ter quase transado com ele depois daquela matéria infeliz ter sido publicada, mas ri por ele ter brochado. Eu também rio. Apesar de nos vermos pouco, tanto pela minha rotina quanto pela dela, ela é a minha amiga mais próxima.
Depois do jogo, passo na feira do bairro, na rua Paulo Barreto, como faço todos os sábados. Sem pressa, paro em algumas barracas para provar frutas, cumprimentando alguns dos feirantes já conhecidos. Decido almoçar ali mesmo: pastel e caldo de cana. O pós-treino dos campeões. Chego em casa lá pela uma da tarde e, após um banho, resolvo algumas demandas do trabalho ao computador. Mesmo que eu goste do que faço, não sou exatamente viciada em trabalho, mas como muitas vezes preciso levar alguma demanda para casa, prefiro resolvê-la na tarde de sábado, já que minhas noites de segunda à sexta-feira são dedicadas, geralmente, a ver Casamento às cegas. Felizmente termino rápido, por isso, ligo para minha mãe.
Nós conversamos durante quase uma hora; ela me conta que a rede de escolas em que ela é consultora pedagógica pretende abrir uma unidade em Fortaleza e, por isso, ela pensa em se mudar. Minha mãe, mesmo aos quase sessenta anos, é uma alma livre; não se prende a lugar algum. Fico feliz por ela, afinal, desde sempre ela gostou de morar próxima ao mar. Eu, por outro lado, falo pouco, quase sempre respondendo às perguntas que ela me faz. Penso que ela seja mais jovem do que eu, apesar da idade.
Dedico o restante da tarde à leitura de Crime e Castigo. Faço um chá gelado e mal vejo o tempo passar durante a leitura, absorta. Quando, porém, chego à parte em que Raskólnikov confessa a Sônia os seus crimes, sou incomodada pela campainha. Irritada, deixo o livro de lado e vou até a porta. Antes de abri-la, confiro o olho mágico e vejo que é Leonardo. Sei que ele veio buscar o restante das suas coisas, mas fico ainda mais irritada por ele ter vindo sem me avisar. Deixo que ele entre, porém. Apesar de termos uma relação amigável, nós nos falamos pouco hoje em dia, e isso acontece apenas quando é necessário; ele fizera questão de deixar o apartamento para mim, mesmo que não tenhamos nos casado, mas a documentação ainda não está pronta.
Parece estranho que ele esteja aqui depois de tanto tempo. Ele tenta me cumprimentar com um abraço, mas eu me afasto um pouco, desconfortável.
— Não vou demorar. — Ele diz, sequer se desculpando por ter vindo sem avisar. — Você separou o que eu pedi? — Pergunta. Ele parece mais um modelo do que um juiz federal. Sua barba está perfeitamente alinhada, e o cabelo, penteado com gel. Ele está usando uma camisa polo branca que, com toda certeza, deve ter sido caríssima. Esse tipo de beleza, que era o que me atraíra nele, do tipo que fazia com que todas as mulheres se perguntassem o motivo pelo qual ele estava comigo, agora parecia não despertar efeito algum em mim.
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As duas faces da justiça
RomanceFernanda Mourão é advogada e trabalha na Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro em prol dos direitos de populações vulnerabilizadas, dedicando sua vida ao trabalho e à luta contra os abusos de poder cometidos em comunidades carentes. Após a...