ROBERTO NASCIMENTO
Eu estou estressado pra caralho. A morte do garoto vítima de bala perdida, que, por acaso, tem o mesmo nome do meu filho, a pressão da mídia e o fato de, depois disso, o Coronel ter caído matando pra cima de mim, o desaparecimento do fogueteiro — que, convenhamos, a essa altura deve estar morto — e a visita da mãe dele, aos prantos, na sexta-feira, foderam com a minha cabeça. Ver aquela mulher honesta chorando pelo filho e pedindo para ter a chance de enterrá-lo mexeu comigo. Eu disse a ela que nós não o matamos, e ela disse, os olhos marejados, que assinamos a sentença de morte dele quando o liberamos. Eu sabia disso quando autorizei que o liberassem. Sabia que traficante não deixa alcaguete vivo pra contar história. A culpa era mesmo minha.
Hoje é quarta-feira; eu estou um caco, mal dormi à noite, por uma boa causa, não que nas últimas semanas eu tenha dormido muito, de qualquer forma, e, pra piorar, ela fugiu de mim. Quando ela chegou hoje cedo, atrasada, toda coberta, mesmo com o calor do Rio de Janeiro, fiquei satisfeito. Sabia que era eu quem tinha causado aquilo. Enquanto ela falava, concentrada, sobre toda aquela baboseira e trazia estatísticas de violência policial, eu não conseguia parar de olhá-la. Ela falava sobre tratamento digno, como se vagabundo merecesse isso, e eu não conseguia parar de pensar nela pedindo mais. Eu pretendia acompanhá-la até o carro e, de novo, foder com a cabeça dela, mas ela foi embora enquanto eu conversava com o primeiro tenente.
Envio uma mensagem para ela, no fim da tarde, mas não recebo resposta. Sinto vontade de vê-la, mas não posso e, por isso, me ocupo com trabalho burocrático. Passados alguns minutos, a mãe do fogueteiro liga, aos prantos. Rejane, o nome dela. Ela diz que conversou com um vapor, amigo de seu filho, que pediu para que ela desistisse, o que confirma que ele está mesmo morto. Tento tranquilizá-la, mas a culpa me consome. Como se eu já não soubesse que ele está morto, porra. Minha visão escurece de imediato. Penso no Rafael, meu filho, no garoto assassinado por bala perdida, e minha cabeça lateja. Desligo o telefone sem esperar que a mulher responda. Saio da minha sala e, num rompante, peço para que um dos soldados prepare o blindado. Meus homens interrompem o que faziam antes de eu chegar, me encarando. Eu vou atrás desse vapor hoje e, se precisar, reviro a favela toda atrás dele.
— A gente vai resgatar o corpo do fogueteiro. — Falo, mecanicamente. Os homens me olham, surpresos, mas obedecem.
Estou tendo uma crise de ansiedade, é o que a psiquiatra da PMERJ diria. No banco da frente do blindado, tento controlar minha respiração, minhas mãos tremendo segurando o fuzil. Tenho pensar de forma fria, racional, mas minha cabeça insiste em voltar para aquela mãe, aos prantos. Penso no meu filho da mesma idade. Respiro com dificuldade, segurando o fuzil com tanta força que os nós dos meus dedos ficam brancos.
— A gente vai atrás do vapor. — Explico, meus olhos fixos à frente. — Vamos esperar na surdina, em algum ponto estratégico. Quando a área estiver tranquila, vamos invadir, e ele vai contar onde tá o corpo do fogueteiro. A gente desce com o corpo. Do resto, eu cuido depois.
— Positivo, meu capitão. — O 02 diz.
— Sabe onde o moleque mora? — Pergunto a Mathias, olhando para trás. Sei que ele sabe porque costumava fazer trabalho comunitário em uma ONG nesse mesmo morro antes de ser caveira.
— É ali na entrada do morro, capitão. — Fala. Ele parece ter vindo a contragosto, mas me obedece.
Dito e feito. Depois de esperar algumas horas, encontramos o vagabundo dormindo feito um bebê em casa. Em silêncio, meus homens se espremem no cômodo minúsculo. Ele não acorda. Como pode dormir tão bem sabendo que destrói a vida de tanta gente? Silenciosamente, sinalizo para que Azevedo encha um copo com água gelada. Ele retorna em silêncio, segundos depois, e me entrega o copo com água, abafando uma risada. Eu derramo a água no rosto do filho da puta que está dormindo. Ele acorda, resfolegando.
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As duas faces da justiça
RomanceFernanda Mourão é advogada e trabalha na Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro em prol dos direitos de populações vulnerabilizadas, dedicando sua vida ao trabalho e à luta contra os abusos de poder cometidos em comunidades carentes. Após a...