O papo, até agora, foi muito bom. Vicente sinaliza para o garçom e pede mais uma garrafa de cerveja. Ainda não estou bêbada, mas alta o suficiente. Conversamos sobre conhecidos em comum, sobre nossas vidas, sobre literatura, e eu evito, a todo custo, falar de trabalho. Quando ele entra no assunto, peço para que ele fale de outra coisa. Ele, então, me conta sobre a sua última viagem, para a Chapada dos Veadeiros, em Goiás. Eu o ouço, atenta, e falo sobre quando, no ano passado, fui a Goiás com minha mãe. Conto sobre a minha visita à casa de Cora Coralina, às margens do Rio Vermelho, e sobre como é uma cidade linda. Ele concorda.
— Você tá linda, sabia? — Ele flerta, olhando para mim. Eu dou um gole na minha cerveja. Seu polegar roça o meu lábio; eu me aproximo mais.
É sexta-feira à noite, então, o bar está lotado. Está tocando Mina do Condomínio. Eu e Vicente estamos em uma mesa sob a escada, um lugar mais reservado. Ele pede, silenciosamente, para me beijar, e eu assinto com a cabeça, permitindo que, ao som de Seu Jorge, ele me beije. Depois de ter beijado Nascimento ontem, beijar Vicente é estranho; ele é gentil até demais. Apesar disso, eu retribuo, na tentativa de tirar Nascimento da minha cabeça. Sinto o gosto de cerveja na sua boca, e percebo o quão bêbado ele está. Passados alguns segundos, ele se afasta, endireitando a postura.
— Vamos lá pra casa. — Eu o convido. Ele concorda, não parecendo surpreso; na verdade, parece ansioso para isso.
Ele chama o garçom e pede para fechar a conta; faço menção de pegar minha bolsa, mas Vicente paga antes. Eu, então, me ofereço para pedir o Uber até o meu apartamento, o que ele aceita. Enquanto esperamos o carro chegar, do lado de fora, ele fuma um cigarro, e eu faço uma careta. Quando ficávamos, há alguns anos, ele ainda não tinha esse hábito. Quando, enfim, o carro chega, ele passa parte do trajeto conversando com o motorista sobre a cidade, parte conversando comigo.
Quinze minutos depois, estamos na porta do meu prédio. Ao descer do carro, porém, eu me detenho; a porra do Sentra preto está lá, de novo, e eu sei quem é o motorista, principalmente porque, dessa vez, a janela do motorista está aberta. Nascimento olha diretamente para mim quando desço. Sua expressão muda quando vê Vicente sair depois de mim. Parece com raiva. Minha vontade é ir até lá e gritar para que ele vá embora, mas não faço alarde; pelo contrário, entrelaço os braços ao redor do pescoço de Vicente e o beijo, sua boca com gosto de cigarro. Ele corresponde de bom grado, e o beijo dura alguns segundos. Não olho novamente para o outro lado da rua.
Subimos até o meu apartamento. Quando chegamos, ele pede licença para ir ao banheiro, e eu, na sala, acendo uma vela perfumada. Vou para o quarto e tiro a sandália de salto, chutando-a para debaixo da cama. Meu celular apita com algumas mensagens, mas eu as ignoro, sem saber quem é. Estou cheia de expectativa. Enquanto ele não volta, me sento na cama. O aparelho apita novamente, por isso, decido colocá-lo no silencioso. Há três mensagens não lidas de um mesmo número que, agora, sei que é de Nascimento.
"É seu namorado, o tal juiz?", a mensagem diz. Então ele acha que Vicente é o Leonardo; e acredita que ainda estamos juntos. Mais do que isso, ele sabe que o Leonardo é juiz federal. Não me surpreendo. Leio a próxima mensagem. "Manda esse cara ir embora." , diz a segunda. Olho a terceira: "Se esse cara não for embora, vou subir." Eu ignoro todas as mensagens, mas não bloqueio o número. Sei que ele está blefando; a portaria não autoriza ninguém a entrar no prédio sem autorização de algum morador e cadastro prévio. Vicente aparece, em seguida, à porta do meu quarto.
— Oi. — Diz ele. Como resposta, eu o beijo. É bom beijá-lo. Eu estou sentada na cama, e ele, em pé. Ele é alto, por isso, tem que se curvar para me beijar assim. Sem afastar nossas bocas, eu desabotoo sua calça, e ele, desajeitadamente, faz o mesmo com a minha. Ele me deita sobre a cama e, uma vez por cima, desce os lábios pela minha mandíbula e, depois, pelo meu pescoço. Sinto sua barba roçar minha pele. Por um momento, isso parece errado. Tudo parece errado. Apesar de estar bom, não é o suficiente; eu não o quero tanto quanto quero o homem lá embaixo.
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As duas faces da justiça
RomanceFernanda Mourão é advogada e trabalha na Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro em prol dos direitos de populações vulnerabilizadas, dedicando sua vida ao trabalho e à luta contra os abusos de poder cometidos em comunidades carentes. Após a...