Dizer que, ao longo do dia, evitei Roberto Nascimento a todo custo é um eufemismo. Noite passada, conseguimos manter um diálogo minimamente saudável, na medida do possível, até que, de repente, ele se transformou. Sabia que me envolver com ele, mesmo que casualmente, era pisar em um campo minado. Eu cogitei mandá-lo embora quando ele me ameaçou, mas, atraída pelo perigo iminente, permiti que ele ficasse. Transamos na sala feito dois animais e, depois, ele foi embora, sem dizer mais nada; ele sequer me olhou enquanto pegava as suas coisas. Enquanto me preparava para dormir, depois dele ter saído sem sequer se despedir, prometi para mim mesma que daria um basta nisso.
Hoje pela manhã, cheguei à sede do BOPE exatamente no horário a fim de evitá-lo, e sequer nos falamos, apesar de, a todo momento, o olhar dele, cheio de luxúria, me acompanhar. Quando nossos olhares se cruzaram uma vez, eu desviei. Próximo ao final do curso, o Coronel entrou no auditório, trocou, em sussurros, algumas palavras com Roberto e, discretamente, acenou com a cabeça que ele o acompanhasse. Fiquei aliviada, de certa forma, com a saída dele, porque a presença dele me lembrava da noite passada, mas, depois dele acompanhar o Coronel, não o vi mais. Ao término da formação, fui às pressas para a Defensoria Pública, já que à tarde teria uma audiência na Vara da Infância; uma das minhas assistidas conseguiu, finalmente, recuperar a guarda dos filhos, o que melhorou quase que imediatamente o meu dia.
Quando retornei à Defensoria Pública, consegui me ocupar com as demais demandas, principalmente com a defesa da Luísa. Não obtive, porém, muito sucesso nas buscas pelo namorado, e ela permanece detida provisoriamente. Agora, minha maior preocupação é que ela seja, de fato, condenada por tráfico de drogas, o que é uma possibilidade cada vez maior, dadas as circunstâncias. Sinto vontade de recorrer a Leonardo ou a algum conhecido que possa me ajudar, mas, mais do que me sentir impotente, odeio ter que pedir favores a alguém. Já cogitei pedir a Leonardo, mas não quero me sentir em dívida com ele. Pelo restante da tarde, faço muito bem o trabalho de evitar Roberto Nascimento; ele é uma bomba-relógio. Penso em sair mais tarde, talvez com Jordana, beber. Tudo para esquecer esse homem.
Pontualmente às seis, parte frustrada, parte exausta, guardo minhas coisas e, quando estou prestes a ir embora, Raquel bate à porta da minha sala. Pelo semblante dela, sei que, com toda certeza, ela não tem notícias boas, o que faz com que, no mesmo momento, eu fique tensa. Ultimamente, não temos nos visto muito por aqui, e sei que, para que ela venha até a minha sala, o assunto é sério. Aceno com a cabeça para que ela entre.
— A que devo a honra de você na minha sala? — Brinco, tentando me convencer de que está tudo bem. Ela ri, mas logo o semblante sério retorna, e eu não consigo evitar a preocupação crescente dentro de mim.
— Não tenho notícias muito boas. —Diz. — Quero que você se sente. — No instante que ela diz isso, eu a encaro, os olhos gentis, mas preocupados. Eu a obedeço e, mesmo que eu sequer saiba do que se trata, crio mil e um cenários na minha cabeça. Penso na possibilidade de alguém ter morrido; um colega de trabalho, talvez, ou até mesmo algum dos assistidos.
— Raquel, por favor, não me mata de susto. — Falo.
— Você assistiu ao noticiário? Ou olhou suas redes sociais essa tarde? — Ela pergunta, séria. Até então, eu estava sorrindo, mas o sorriso desaparece assim que ela faz essa pergunta. Não olho o meu celular desde que cheguei da Vara da Infância essa tarde. Nego com a cabeça, de repente tensa.
— Não. — Pego a minha bolsa sobre a mesa e a vasculho, à procura do celular, mas não o encontro. Olho sobre a mesa, e ele também não está lá. Penso na possibilidade de tê-lo esquecido no carro.
Ela se senta em uma das cadeiras e desbloqueia o celular em mãos. — O caso do Rafael estava estagnado, como você sabe. O Ministério Público concluiu que não houve negligência na ação do Capitão Nascimento, já que foi ele quem autorizou a operação, mas a investigação ainda continuou aberta. — Eu assinto com a cabeça. Eu sei muito bem de tudo isso. Essa investigação, porém, está parada; eu sequer tenho coragem de olhar Isabel nos olhos ou entrar em contato com ela exatamente por isso. O olhar de decepção dela quando soube que o Ministério Público concluiu que não houve negligência dói em mim até hoje.
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As duas faces da justiça
RomanceFernanda Mourão é advogada e trabalha na Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro em prol dos direitos de populações vulnerabilizadas, dedicando sua vida ao trabalho e à luta contra os abusos de poder cometidos em comunidades carentes. Após a...