Capítulo 3

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Hoje será o primeiro dia do curso de treinamento em educação e promoção dos direitos humanos para a PMERJ. A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e o Ministério Público Estadual atuarão em conjunto; apesar dessa ação contemplar toda a polícia militar do Estado, por ora o foco será apenas na capital e nas regiões metropolitanas – a Grande Rio. Caso haja um resultado positivo, estenderemos para os demais batalhões em outras cidades. Como eu preciso de tempo para ministrar esse curso e minha carga horária é apertadíssima, parte dos meus assistidos foram destinados a outros dois defensores, que serão acompanhados por uma estudante de direito em residência jurídica. Eu não abri mão, porém, de uma das minhas assistidas: a mãe do Rafael. Eu prometera a ela, semanas atrás, após o enterro, que buscaríamos justiça pelo filho dela.

Até então, a PMERJ instaurara um processo administrativo e o Ministério Público também tinha sido notificado. No dia seguinte à reunião da Defensoria com o Comandante-Geral e o Coronel da PMERJ, eu soubera, por Marco, defensor público geral, que a bala encontrada em Rafael tinha passado pelo exame de balística e era compatível, sim, com um tipo de armamento específico utilizado pelas forças policiais especiais do Rio de Janeiro, o que confirmava que ela viera de alguém do BOPE. Alguém para quem, hoje, eu falarei sobre direitos humanos. A mídia, claro, está em cima; nas redes sociais, militantes exigem a responsabilização dos culpados. Eu não sei, ainda, de qual arma saiu o tiro que matou Rafael, mas, de quem quer que seja, eu vou lutar pela exoneração do cargo. Quem dera a ordem para a operação, porém, era o Capitão Nascimento, e ele, com toda a certeza, tem as costas quentes: tem contatos, anos de corporação, é visto como herói por parte da mídia e, o principal, é protegido pelo Secretário de Segurança Pública. Exonerar um capitão do BOPE do cargo é difícil, mas não impossível.

Saio de casa e sei que, de onde moro, em Botafogo, até Laranjeiras, não gastarei quinze minutos. Os dois bairros são vizinhos. Laranjeiras é um bairro charmoso, com muitas construções antigas; é lá que está a sede do governo do Rio de Janeiro, assim como a residência oficial do governador, a sede do Fluminense, o Instituto Nacional de Educação de Surdos. É o bairro citado na canção que Nando Reis compôs e dedicou à amizade de longa data com a Cássia Eller. Aliás, não só Cássia Eller morou lá, mas também Candido Portinari, Cartola, Ruy Barbosa. É um bairro histórico e que, apesar do tempo, resiste. E é lá também que está localizada a sede do BOPE, para onde estou indo.

Estou vestindo roupas mais casuais do que geralmente uso no dia a dia na Defensoria: calça jeans, tênis, uma camiseta branca e, por cima, um blazer azul marinho. Alguns acessórios, mas nada chamativo. E, claro, meu crachá de identificação. No cordão do crachá, há alguns broches: o broche da campanha Faça bonito; um da deusa romana Iustitia, a qual conhecemos como representação da Justiça; outro com os punhos levantados, com os dizeres Vidas negras importam; outro, com a bandeira LGBTQ+ estampada; um escrito Em defesa da universidade pública, que ganhei após uma palestra na UERJ e, por fim, um com os dizeres Lute como uma advogada. Não achei necessário tirá-los para a minha ida à sede do BOPE. Sei que, mesmo que alguns discordem ou acreditem que direitos humanos é baboseira esquerdista e para humanos direitos, eles não me desrespeitarão. Pelo menos, não na minha frente.

Paro na guarita, coloco a cabeça para fora do carro, retiro os óculos escuros, colocando-o sobre o banco do carona, e mostro o meu crachá de identificação. O policial na guarita assente e libera a minha passagem. Hoje, vim sozinha, já que minha fala será apenas para um grupo de, em torno, quarenta homens do BOPE. Os portões pretos de ferro se abrem e eu sigo para uma vaga de estacionamento. O lugar é enorme, e ao longe, vejo alguns soldados em treinamento. Assim que desço do carro, vejo o Coronel e caminho em sua direção.

– Bom dia, doutora. – Sua fala é firme, mas educada. – Tudo certo para hoje? – Ele faz um gesto com a mão, pedindo que eu vá na frente, e me acompanha.

As duas faces da justiçaOnde histórias criam vida. Descubra agora