Nos encharcou de gasolina
E falou: Sou seu amor ou seu Nero?
Eu sou seu amor ou seu Nero?
Eu sou seu amor ou seu Nero?
Eu sou paciente, mas tem coisa que eu não espero.
— Baco Exu do Blues, Te amo disgraça
Sei que, fisicamente, não corro perigo, mas nem por isso estou menos tensa. Quando coloco o interfone no lugar, vou até o quarto, por precaução, e pego o meu celular. Decido mantê-lo comigo. Minhas mãos tremem enquanto eu espero. Eu deixei claro a ele, ontem, que nada mais aconteceria entre nós, mas ele continua rondando a minha casa. Pior do que isso: ele continua me vigiando. Estou em um dilema, porém. Por um lado, quero lutar contra a atração que sinto por ele e mandá-lo ir embora, pedir para que pare de rondar a minha casa, ameaçá-lo com uma medida protetiva; por outro lado, quero ceder. Quero que ele faça eu me sentir como eu me sentira ontem. Quero que ele me leve ao meu limite. Ando de um lado para o outro pela sala, nervosa.
Alguns minutos se passam e, finalmente, ele bate à porta. Respiro fundo e, quando a abro, lá está ele: camiseta preta, calça preta. Preto combina com ele. Uma de suas mãos está apoiada no batente da porta. Ele parece exausto. Eu bloqueio a porta com o meu corpo. Quando baixo olhar, vejo, no cós da sua calça, uma arma. Não entendo muito bem de armas, mas sei que é uma pistola. Eu gelo. Seus olhos estão escuros; ele está com raiva. Paro para pensar na diferença dele em serviço e fora dele; como Capitão Nascimento, sua expressão é, quase sempre, impassível, impenetrável. Quando não está em serviço, porém, ou quando estamos sozinhos, consigo perceber melhor suas emoções.
— Entra. — Diz, secamente, apontando com o queixo para dentro do meu apartamento.
— Você não vai entrar. Estou com um amigo. — Minto. Ele não acredita.
— Ah, é? — Ele pergunta, sarcástico. — Acha que não vi o idiota saindo daqui?
— Ele foi comprar cigarro, mas deve voltar daqui a pouco. — Penso na primeira desculpa que consigo. O homem a minha frente ri.
— Como advogada, você deveria ter aprendido a mentir melhor. — Ele avança, me obrigando a recuar para dentro do apartamento. — O idiota saiu daqui tão bêbado que nem sei se vai achar o caminho pra casa.
Uma vez dentro do apartamento, ele encosta a porta atrás de si, sem desviar o olhar de mim. Ele para no meio da sala, olha ao redor do ambiente e cruza os braços, me encarando. Não falo nada.
— Amigo. — Diz, assentindo com a cabeça. — Quer dizer que ele não é seu namorado?
— Você deveria saber, já que, aparentemente, vasculhou toda a minha vida. — Respondo. Ele se vira por um momento, trancando a porta da sala. Eu engulo em seco.
— Você é atrevida. — Fala. Meu coração bate rápido. — Não. Sei que esse apartamento está no seu nome e no de alguém chamado Leonardo Negrini.
Ele se aproxima de mim. Ele está muito, muito próximo. Tão próximo que consigo senti-lo respirar. — É. — Só consigo dizer isso. Não consigo parar de pensar na arma no cós da calça dele. Eu deveria sentir medo? Ele se aproxima mais, e eu me afasto. Fico sem saída, porém, quando minhas costas batem na parede. Não tenho para onde ir. Tento me lembrar de respirar. Fixo o olhar na parede atrás dele, buscando retomar o controle do meu próprio corpo. A sala enorme parece minúscula agora.
— Olha pra mim. — Ele pede; não o obedeço, porém. Ele brinca com meu rabo de cavalo, puxando-o em seguida, obrigando-me a encará-lo.
— Você vai atirar em mim? Com essa arma? — Pergunto, parecendo ridícula. Meu celular ainda está na minha mão. Tento me lembrar das aulas de krav magá que fiz, há alguns anos, a pedido de Leonardo.
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As duas faces da justiça
RomanceFernanda Mourão é advogada e trabalha na Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro em prol dos direitos de populações vulnerabilizadas, dedicando sua vida ao trabalho e à luta contra os abusos de poder cometidos em comunidades carentes. Após a...