Capítulo 8

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Mais uma mãe revoltada, uma pergunta sem resposta

Como o policial não viu seu uniforme da escola

Vinícius é atingido com a mochila nas costas

Como é que eu vou gritar que a Favela Vive agora?

— DK, Favela Vive 3. 

Mais cedo, eu me levantei da cama arrastada; mais uma noite mal dormida. É sexta-feira, então, a rotina é ir até a sede do BOPE, em Laranjeiras e, depois, seguir para a Defensoria Pública, no Centro, onde eu terei muito, muito trabalho me aguardando. Terei uma reunião com Isabel, mãe do Rafael, e muita, muita papelada burocrática. Eu soube, na tarde de ontem, que o Ministério Público do Estado chegara à conclusão de que não houve negligência; a partir do momento em que o BOPE entrava na comunidade, os moradores tinham ciência de que deveriam permanecer em suas casas. Infelizmente, a PMERJ e a própria corregedoria viam Rafael como um dano colateral — na visão deles, pelo menos o dono do morro, o alvo deles, tinha sido capturado. Morto, mas capturado. Essa é a lógica deles, e essas ações truculentas, arbitrárias e ilegítimas não são barradas pelos mecanismos institucionais. Estou decepcionada, por mim, por Isabel e, também, por Rafael, que merece justiça. Eu tinha certeza de que o MP reconheceria que a ação fora ilegítima. Mesmo que isso abale um pouco a fé nesse sistema, do qual eu faço parte, eu tenho que acreditar nele. Preciso acreditar. 

Eu entendo a necessidade de combater de forma ostensiva e repressiva a criminalidade no Rio, mas, infelizmente, nessa guerra, não apenas os criminosos são vitimizados; policiais, nesse processo, também são atingidos, mas quem mais morre, hoje, são pessoas inocentes, vítimas de bala perdida. Acho engraçado o termo bala perdida, quando, na realidade, elas têm um alvo claro: jovens periféricos negros. Ágatha. João Pedro. Thiago. Marcos Vinícius. Rafael. Todas essas vítimas, em sua maioria crianças e adolescentes, não são vistas como pessoas, mas como danos colaterais. Os policiais contam com a autorização dos seus superiores, com a conivência de seus colegas de farda e com a vista grossa da corregedoria. Não há como não ter um desfecho não violento. 

Por isso, hoje, ao falar sobre direitos humanos para a Equipe Alfa do BOPE, me sinto desanimada. Exausta. Não só por não ter dormido à noite, mas por saber que estou enxugando gelo. Meu semblante mostra isso. Quando cheguei, não fui recebida pelo coronel, mas sim pelo próprio Capitão Nascimento. Não me sinto envergonhada por tê-lo beijado ontem à noite; consigo agir como se nada tivesse acontecido. Sinto, porém, que traí os meus princípios — não quero, de forma alguma, estar envolvida com ele. Ao fim da minha fala, ele me agradece, mais uma vez, em nome do BOPE — mecanicamente, de um jeito quase que ensaiado. 

— Doutora, pode me acompanhar até a minha sala, por gentileza? — Ele solicita. Eu me lembro, então, de que preciso pegar a documentação do meu carro, que ficara aqui com os homens dele.

Eu concordo e o sigo, atravessando o saguão do prédio. Subimos um lance de escadas, ele sempre à frente. Observo ao redor; há alguns homens em treinamento físico. A atmosfera, aqui, sempre parece ser de tensão. Quando chegamos à porta da sala, ele gesticula para que eu entre primeiro. Há uma caveira, símbolo do BOPE, desenhada na parede. De repente, fico tensa, mas entro. A sala é pequena, menor do que a minha na Defensoria Pública, dividida com drywalls. Estamos sozinhos, e ele está irresistível usando a camiseta preta do BOPE. Afasto, porém, qualquer pensamento ligado a ele. 

— Senta. — Ele gesticula para a cadeira desocupada. Eu me sento. Ele vasculha a gaveta da mesa e, em seguida, me entrega a documentação do carro.

As duas faces da justiçaOnde histórias criam vida. Descubra agora