"Ela apontou alguns dos meus defeitos
Ah, bebê, eu sou todo errado!
Guerra de orgulho, vaidade
Vai se sentir melhor se eu te falar que tudo o que pensa sobre mim é verdade?"
— BK', Poesia acústica #2: Sobre nós
ROBERTO NASCIMENTO
Ela não responde a minha última mensagem, mas a visualiza. Olho para o prédio moderno pela janela do carro; as luzes do quarto dela ainda acesas. Eu nem deveria estar aqui, porra. Deixo o telefone de lado e suspiro, frustrado. Frustrado pra caralho. A verdade é que eu não consigo parar de pensar nessa mulher, desde que bati os olhos nela.
Há algumas semanas, quando aquela notícia estourou na mídia, fiquei com sangue nos olhos. Todo santo dia, eu me coloco em risco, na linha de frente, subindo o morro. Todo santo dia, saio de casa sem saber se vou voltar. Eu vivo sob estresse constante. Por isso, quando saiu aquela matéria, fiquei puto – primeiro porque sequer a conhecia, mas, aparentemente, estava na mira dela; segundo porque aquele pessoal da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro vivia defendendo a escória e esculachando policial. Mesmo que fosse trágica, a morte do moleque tinha sido um dano colateral. Fiquei mais puto ainda quando meu coronel me informara que haveria uma reunião para uma possível colaboração entre a Defensoria Pública e o BOPE, à qual fui, a contragosto. Quando a vi, fiquei surpreso; não imaginava alguém tão jovem. Ela aparentava estar nos seus vinte e tantos anos; descobriria, depois, que estava equivocado – ela tem trinta, o que faz sentido, já que, pra ser defensor público no Brasil é preciso ter experiência jurídica de, no mínimo, três anos. Além de ser jovem, ela era linda – e gostosa pra cacete. Naquele dia, usava uma saia lápis, deixando suas pernas à mostra. E que pernas.
Fiquei louco; louco não, isso era eufemismo. Eu fiquei obcecado pra caralho. Naquela semana, vasculhei a internet pra achar qualquer coisa sobre ela – descobri que ela fora aprovada em primeiro lugar no curso de direito da UERJ, passara no exame da ordem nas cinco primeiras colocações e, há alguns anos, assumira o cargo na Defensoria Pública. Li algumas entrevistas sobre o seu trabalho. Achei um perfil nas redes sociais, mas era privado; ela era discreta em relação à vida pessoal. Mas eu tinha um trunfo: o meu trabalho. Bendita seja a base de dados da PMERJ. Descobri, então, uma compra conjunta de um imóvel em Botafogo no nome dela e de um homem, o qual descobri ser um juiz federal. Sei que não era marido, porque, no RG dela, constava que o estado civil era solteira, além do fato de que, quando a vi, ela não usava aliança. Pedi para um conhecido da Secretaria Municipal da Fazenda, que me devia um favor, que descobrisse para mim o endereço do imóvel, o qual salvei no aplicativo de GPS do meu telefone. Ainda na base de dados da PMERJ, também descobri o número de telefone pessoal dela. Não tirava ela da cabeça.
Então imaginem, senhores, quando soube, ontem pela manhã, que seria ela quem ministraria o curso para o meu batalhão. Ela parecia me desprezar, mas não conseguia tirar os olhos de mim enquanto falava. Eu achei – e ainda acho – essa formação um desperdício de tempo e de dinheiro público. O problema é que o governador, um intelectualzinho de esquerda, acredita que essas porcarias funcionam. Os meus homens do BOPE foram treinados para serem máquinas de guerra; nosso grito de guerra já manda o papo: Fazemos coisas que assustam o Satanás. Eu fui treinado assim, parceiro. Lidamos com incursões em comunidades dominadas por traficantes, com delinquentes armados até os dentes, com contenção de rebeliões em presídios de segurança máxima, motivo pelo qual nosso treinamento é diferenciado. Não dá pra pensar em direitos humanos quando se vive em guerra com todo o tipo de escória da sociedade. Essa ideia é utópica.
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As duas faces da justiça
RomanceFernanda Mourão é advogada e trabalha na Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro em prol dos direitos de populações vulnerabilizadas, dedicando sua vida ao trabalho e à luta contra os abusos de poder cometidos em comunidades carentes. Após a...