Família Normal

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"A felicidade não é feita do tamanho da casa, mas do amor que enche a casa" - Hugo Baggio

- Então você está namorando Charles Walton?

- Fala mais baixo, Will. As pessoas podem te escutar!

Olhei em volta do corredor da escola procurando por alguém que pudesse estar ouvindo a nossa conversa. Felizmente ninguém parecia dar atenção a nós dois. Ou a mim, porque atenção é o que William mais está recebendo está semana, principalmente das meninas.

- Por que vocês estão namorando se ninguém pode saber? - Suas sobrancelhas arquearam, um gesto muito comum para William.

- Porque ninguém tem nada a ver com a minha vida. Promete que não vai contar para ninguém, Will?

- Prometo. Não converso com ninguém aqui mesmo.

Olhei ao redor outra vez, fitando um grupo de meninas do segundo ano que não param de encarar Will e soltar risinhos agudos. Juro que se você olhar de perto da para ver os olhos delas quase saltando dos seus rostos e um fio de saliva descendo por seus queixos. 

- Porque você não quer. - Respondi, indicando com a cabeça o ponto onde as garotas se encontram.

No instante que Will colocou os olhos nelas os risos ficaram mais altos e vários pares de mãos se levantaram no ar, fazendo tchauzinhos. William não pareceu nada afetado pela reação das meninas, e tratou de formar um sorriso bem largo e retribuir o cumprimento. A cena toda é hilária, não sei como nenhuma delas não desmaiou ali mesmo. Me virei para a outra direção, tentando esconder o riso se formando em meus lábios.

- Eu estou vendo você rir, Gaia.

- Eu estou vendo você flertar, Will - Respondi com um sotaque inglês tão ruim que fez Will soltar uma gargalhada alta.

- Bom, não é porque estou no inferno que não vou me divertir!

- Com elas? - Balancei a cabeça, mostrando a minha decepção - Novinhas, Will? Pensei que você gostasse das mais experientes.

Ele veio andando atrás de mim dando um sorriso maquiavélico, como se estivesse planejando algo ruim.

- Por que, você conhece alguma menina experiente para me apresentar? - Pela segunda vez naquela manhã ele arqueou as sobrancelhas. A insinuação nas suas palavras fez meu rosto queimar. Me sentei na cadeira e abaixei a cabeça para pegar o caderno que esta dentro de minha bolsa, tentando esconder o rubor em meu rosto. 

- Posso pensar em algumas - sussurrei exatamente no momento que uma garota loira, super magra entrou na sala. Ela percebeu meu olhar por um momento, e sem se perturbar, se virou, jogando os longos cabelos por cima dos ombros e se sentou. Lottie Keys, a "garota malvada". 

O Sr. Binns pigarreou, explicando o exercício que temos que entregar até o final da aula. Abri o livro na página indicada e tentei ao máximo só falar sobre o exercício com Will. Outra vez fomos os primeiros a acabar. Para não perdemos aula outra vez, sentamos no pátio da própria escola, dividindo uma lata de coca-cola e fazendo planos para irmos ao jogo de basquete juntos no sábado. 

Será o primeiro jogo da temporada e a nossa escola receberá alunos de uma escola de Sacramento. Como Charles está no time e não ficará comigo na arquibancada, decidi que não tem problema nenhum em ir com Will, aliás depois do final de semana tínhamos virado amigos.

***  

- Gaia?

Ouvi a voz do meu pai vindo da cozinha assim que entrei em casa. Queria mais que tudo ignora-lo e ir direto para o meu quarto, mas é melhor ver o que ele quer e acabar com o assunto de uma vez.

- O que você quer? - Fui o mais áspera possível.

- Saber como foi o seu dia.

- Ótimo.

Me virei, pronta para acabar com aquele papo ridículo e sair da cozinha, mas sua voz me impediu.

- Fez algo interessante?

- Não.

- O que você acha de jantarmos juntos hoje, querida?

Me encolhi ao ouvir a palavra "querida". Ele sempre a usa quando está tentando ser educado ou fingir que temos uma relação amigável quando está perto de seus amigos.

- Não estou afim. 

- Não precisamos nem sair de casa, podemos comer aqui mesmo. Eu cozinho. O que você acha?

Uma risada deixou minha boca ao ouvir ele dizer que cozinharia. Não lembro a ultima vez que fez isso. Há uns dez anos atrás, talvez? E só porque ele tinha esquecido o meu aniversário. 

- Já disse que não estou afim.

Me virei mais uma vez, decidida a deixar a cozinha antes que ele dissesse mais alguma coisa, mas suas mãos gordas se fecharam em torno do meu braço, me virando.

- Eu estou tentando ser uma família normal outra vez, Gaia! - Sua voz saiu mais alta, me sobressaltando - Juro que estou, mas você precisa me ajudar!

Me soltei de suas mãos, dando alguns passos para trás para poder clarear os meus pensamentos.

- Família normal? Nós nunca fomos uma família normal - Gritei, não contendo a raiva se formando dentro de mim.

- Em uma família normal os pais não deixam os avós cuidar da filha e muito menos jogam ela nas mãos de empregadas depois que os avós morrem. Em uma família normal o pai não fica meses fora de casa sem ligar para dar uma satisfação. Em uma família normal a mãe não se tranca no quarto depois de se drogar e fica dias lá dentro, sem nem mesmo se lembrar que uma garotinha de 7 anos está precisando dela!

As lagrimas saltaram dos meus olhos e não tentei conte-las. O jorro de palavras saindo da minha boca cada vez mais alto.

- Em uma família normal os pais montam as árvores de natal com a filha ao invés de mandar os empregados fazerem o trabalho. Em uma família normal o pai diz que ama a filha ao invés de andar pela casa e fingir que ela não existe, mesmo quando ela o chama incessantemente para que ele leia uma história para ela a noite. Em família normal o pai não trai a mãe com outro homem, e a mãe definitivamente não comete suicídio sem nem pensar na garota de 16 anos que está deixando para trás!

Ele se encostou contra a pia da cozinha, provavelmente tentando achar algum argumento para contradizer as minhas palavras, mas não deixei ele falar. Não quero ouvir ele falar, então continuei gritando as palavras que estão presas na minha garganta durante todos esses anos.

- Então não venha me chamar de querida, ou dizer que somos uma família. Eu nem sei quem é você. Em todos esses anos você é só um homem que some por meses e volta com presentes que não significam nada para mim. É como se eu morasse com um estranho. Então faça um favor a si mesmo e não tente recuperar todos os anos que você perdeu preocupado com dinheiro, porque já é tarde demais.

Me virei, e dessa vez não voltarei tão cedo. Corri na direção da porta de entrada, sentindo as lágrimas caindo dos meus olhos.

- Gaia!

A voz do meu pai só me fez correr mais rápido. Não quero ouvir nenhuma palavra vinda dele.

- Gaia, volte aqui!

Continuei correndo, somente parando quando as minhas pernas começaram a doer e o ar a faltar. Me sentei na calçada de uma rua qualquer, tentando recuperar o folego e pensar no que fazer em seguida.

Peguei meu celular, procurando o número. Sei que posso contar com a ajuda dele, sei que ele arranjará um jeito de me fazer esquecer esta conversa, pelo menos hoje a noite. Ouvi o toque do celular três vezes antes dele me atender.

- Gaia?

- William? Preciso de um favor.  

Roleta RussaOnde histórias criam vida. Descubra agora