Sonho Eterno

398 29 0
                                    

"Mas não me consolem: da minha dor, sei eu." - Lya Luft

Não posso ficar aqui por muito mais tempo. Fechando os olhos, beijei a testa dela e me virei. Sem olhar para trás, deixei a sala.  Não quero ir para o salão e ter que encarar todas aquelas pessoas então desviei meu caminho, indo pela cozinha, passando pela piscina e atravessando a pequena ponte que leva ao lago. Virei a direita, seguindo em direção a floresta.

Não demorou muito até ver o que estava procurando, só que o banco que minha mãe costumava me levar quando eu era criança para comermos marshmallows em frente a fogueira não está vazio. Me aproximei, tentando reconhecer a pessoa sentada lá.

Ele olhou para cima e me encarou. Um frio passou por minha barriga quando olhei para os cabelos castanhos claros, olhos azuis, nariz reto e a boca de um vermelho rosado, chamativo. O reconheceria em qualquer lugar. Charles Walton. Meu primeiro - e único - amor.

- Gaia! - ele se levantou e veio em minha direção - Eu sinto muito pelo que aconteceu.

Me assustei quando seus braços fortes envolveram meu corpo magro e fraco. Abracei-o de volta, tendo que erguer meus pés para colocar meus braços em volta de seu pescoço. Tirando Marta, não chorei na frente de mais ninguém, mas ali, nos braços dele, as lágrimas banharam meu rosto e embaçaram a minha visão.

Charles é a única pessoa da escola que gosto e converso (ou conversava). Costumávamos ser muito próximos, mas as fofocas sobre um possível relacionamento entre nós dois fez com que eu me afastasse, sem dar nenhuma satisfação. Simplesmente passei a ignora-lo na escola e em todas as outras partes da minha vida.

A verdade é que gosto dele, mas aos seus olhos eu, com certeza, não passo de uma irmã. Para evitar todo o constrangimento sobre me apaixonar pelo meu melhor amigo, decidi partir.

- Ei, olhe para mim.

Ele se afastou, acariciando minha bochecha com seu dedo indicador, secando minhas lágrimas.

- Estava preocupada com você - eu disse quase inaudivelmente.

Ele riu, me abraçando outra vez, um abraço breve. Nos dirigimos ao banco e sentamos.

- Gaia, você está passando por vários problemas e está preocupada comigo? Por favor, não perca seu tempo.

Rumores sobre o divórcio dos pais dele estavam correndo pela escola, e eu, depois de te-lo trancado para fora de minha vida, não pude descobrir a verdade.

- Meus pais não estão se separando. Minha mãe está gravida, mas não quer contar para ninguém ainda.

Ele pausou, rindo e balançando a cabeça.

- Meu pai, como você pode estar imaginando, quer contar para todo mundo. A secretária entrou no escritório dele e viu ele e a minha mãe brigando por conta do assunto, a coitada espalhou para todos que eles vão se divorciar.

Não pude conter o sorriso que se formou no meu rosto.

- Então em breve teremos um mini você correndo por ai?

- Um mini meu pai, Gaia.

- Eu prefiro um mini você.

- Eu também - ele sussurrou, me fazendo rir.

Sentamos lá por um tempo, sem falar nada. O silêncio não é desconfortável, muito pelo contrario, sentar em silencio com ele ao meu lado me traz paz.

- Eu sinto sua falta.

Olhei para ele, secretamente me alegrando com a sua confissão.

- Eu também - sussurrei.

Ele entrelaçou seus dedos aos meus, causando uma onda de arrepios no meu corpo.

- Por que você está aqui fora? Quando vi seus pais sozinhos achei que você não tinha vindo.

Ele me olhou, fazendo-me sentir como se estivesse vendo além dos meus olhos.

- Meu pai estava me apresentando para algumas pessoas importantes, tentando construir o meu futuro, não achei que um velório era o lugar apropriado para isso então vim para cá.

Ponderei sua resposta por um tempo, me encolhendo ao lembrar da palavra 'velório'.

- Também esperava te encontrar aqui. Você costuma vir aqui quando está se sentindo sufocada.

- Por que você queria me encontrar? - disse surpresa.

- Estou preocupado com você. Queria ver se estava bem.

- Estou - Respondi rápido demais e ele me pegou na minha mentira.

- Não, não está. Eu estou aqui se precisar.

Suas palavras me aqueceram. Como quero voltar no tempo, para quando tudo era menos descomplicado.

- Eu sei. Obrigada.

Me levantei, olhando no relógio.

- Vamos voltar, em meia hora temos que estar no cemitério para encontrarmos o padre.

Ele me seguiu até a porta do salão. Quando entramos, disse um breve adeus e me virei. Avistei Marta depois de alguns minutos, ela esta ajudando meu pai a vestir o casaco, seus olhos me encontraram quando me aproximei.

- Srta. Marriott, estávamos a sua procura, está na hora.

O salão está quase vazio, todos estão dirigindo-se ao cemitério, segui meu pai e Marta até o carro. Bart abriu a porta traseira e nós entrarmos. A viagem até lá foi quieta e desconfortável. Olhei para a janela, evitando o olhar do meu pai. Tentei não pensar sobre o que estamos prestes a fazer. Depois do por-do-sol tudo se tornará real.

Desci do carro e passei meus braços sobre o ombro de Marta. Ela está chorando inconsolavelmente. Sentamos nas cadeiras da frente ao lado dos meus outros familiares. O padre começou a orar, fechei meus olhos, orando pela primeira vez na minha vida, pela alma dela e pelo impossível.

O tempo pareceu acelerar para o momento que menos anseio. Meu pai levantou-se, fez seu discurso em meio a soluços. Tentei não prestar atenção nas palavras, ouvir ele falando dela não me parece justo. Ele é uma das causas desse velório. Passei a semana inteira pensando em um discurso, pensando sobre o que e como falar.

- Quero passar a palavra para minha filha, Gaia. - Me levantei, tentando não olhar para a platéia. Não quero me despedir. Mas como filha, vir aqui e dizer algumas palavras bonitas e tocantes é a minha obrigação. Fiquei parada por um tempo, fitando o papel que vibra em minhas mãos tremulas. As palavras presas na minha garganta.

Procurando um porto seguro encarei a platéia, então o vi. Sentado duas fileiras atrás do meu pai e Marta, Charles sorriu fazendo um sinal positivo com a cabeça, me incentivando a falar. Respirei fundo, tomando coragem.

- Não queria que este momento chegasse, porque não queria dar um adeus definitivo - Segurei as lágrimas, ninguém precisa sentir pena de mim. - Confesso que não sou boa com discursos, e nunca pensei sobre o que falar em um velório.

"Saber que minha mãe não me verá formando na escola, na faculdade, ela não me verá casando, ou tendo filhos. Sinceramente não sei como farei isso sem ela, não sei como seguir em frente. Perdi a pessoa mais importantes da minha vida. Se fechar os olhos e me concentrar, ainda posso ouvir sua risada, sentir sua mão acariciando meu rosto. Durante esta semana, me escondi no closet dela. Sentei lá por algumas horas só para poder sentir seu cheiro e a segurança que ele me traz.

Não sei qual é a coisa certa a falar nessas situações. Não quero falar sobre sua beleza, ou seu senso de humor. Todos aqui a conhecem, vocês sabem o quão bonita e engraçada ela era. Não quero lembrar dos momentos felizes, porque dói saber que nunca mais os vivenciarei. A verdade é que queria que ela estivesse aqui, ela era muito melhor em falar em público do que eu. Com ela tudo era mas fácil. Sei que devo falar algo bonito, mas só quero que lembrem dela, rezem por ela, deixem que ela saiba, não importa onde ela esteja, que vocês a amam. Eu te amo, mamãe."

Voltei para o meu lugar com a cabeça baixa, querendo mais que tudo ficar sozinha. Desviei o olhar quando o caixão foi colocado embaixo da terra. Peguei o buquê de tulipa - as flores favoritas dela - e com o olho semicerrado joguei-as em cima do caixão. Então é isso, ali ela ficará para sempre, presa em um sonho eterno.

Roleta RussaOnde histórias criam vida. Descubra agora