O Garoto Inglês

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"A solidão é uma grande força que preserva de muitos perigos" - Jean Baptiste Henri Lacordaire

Voltar para a escola foi difícil. Se na semana anterior estava me sentindo incomodada com o olhar de pena que todos lançavam para mim, esta semana está muito pior. Garotas que nem conheço me abraçando no meio do corredor, professores odiados por todos sendo gentis comigo, pessoas me chamando para almoçar no intervalo.

Eu não quero a atenção de ninguém, estaria muito mais feliz se todos me deixassem em paz e seguissem com suas vidas como eram antes. Toda essa bondade me faz lembrar o motivo por ser alvo de pena quando o que mais quero é esquecer.

- Achei que você tinha parado com essa mania horrível - A voz de Charles me assustou e derrubei minha cópia de "Guerra e Paz" no chão. Abaixei para recolher o livro, voltando meu olhar para ele.

- E desde quando ler Liev Tolstói é uma "mania horrível"? - Tentei soar o mais sarcástica possível, rolando meus olhos quando a carranca se formou em seu rosto.

- Você sabe muito bem que não estou falando disso - Ele puxou o cigarro que se encontra entre meus dedos e o jogou no chão, pisando em cima. - Se te pegarem fumando na propriedade da escola outra vez você será expulsa.

- Duvido muito que alguém me expulse, meu pai provavelmente compraria a diretoria com montanhas de dinheiro, você sabe disso.

O encarei, esperando a resposta que ele provavelmente não tem. Não é mentira o que acabei de falar. Ninguém é expulso da St. Michael Academy, a não ser que você cometa um crime muito grave, como matar um professor ou agredir gravemente um aluno ou funcionário.

- Me preocupo com você - Meu estomago congelou com as palavras dele. É reconfortante te-lo de volta, sei que somos só amigos, mas não consigo controlar as reações do meu corpo quando estamos perto um do outro.

- Eu sei. E também me preocupo com você - Parei de falar, checando a hora no relógio - E agora precisamos ir porque já estamos cinco minutos atrasados para a aula.

Nos despedimos no corredor. Charles se dirigiu para a aula de educação física e eu entrei no laboratório de biologia. Felizmente o professor está atrasado então não terei que ouvir um sermão. Me dirigi a mesa que sempre sento. Sou a única estudante na aula de biologia que não tem um parceiro, até hoje.

Um garoto alto, magro - com um rosto memorável - se encontra exatamente na cadeira que sempre está vazia ao meu lado. Não escondi o desconforto ao me sentar ao lado dele, esta é a unica aula em que posso ficar sozinha - ou podia - e agora alguém decide acabar com a minha tão querida solidão.

O encarei, tentando parecer o mais hostil possível, mas o menino de cabelos castanhos e olhos azuis sorriu, mostrando-me seus dentes super brancos e alinhados. Se tirar uma foto agora ela provavelmente irá parar em uma capa de revista. Ele é realmente bonito, mas acima de tudo, um intruso.

- Olá! Eu sou William. William Henri Hoffmann.

Ele estendeu a mão, formal demais, imediatamente percebi o sotaque inglês. Apesar de não gostar da ideia de ter um novo parceiro de laboratório resolvi ser educada e responder o cumprimento.

- Eu sou Gaia. Gaia Marriott - Suas sobrancelhas arquearam, como se esperasse qualquer outra pessoa ali, menos eu.

- Gaia? Filha de Elizabeth e Cornel Marriott?

- Hum, sim. Como você conhece minha família? - Soltei minha mão da dele, me afastando em uma posição defensiva. Como ele conhece minha família?

- Quem não conhece sua família? Seus pais são donos da empresa mais rica da América do Norte. Sou apaixonado por negócios, pretendo me formar em negócios quando entrar na faculdade, sei um pouco sobre empreendedores.

Além de ganhar um parceiro de laboratório, ganhei um parceiro de laboratório nerd que adora meus pais. Ótimo. Tentei sorrir, pensando em como desviar o assunto da minha família.

- E o que te fez mudar da Inglaterra para La Savior?

- Não lembro de falar que sou da Inglaterra.

- Seu sotaque é meio obvio.

Um sorriso preencheu seu rosto junto com um pequeno rubor. Passamos o resto da aula conversando sobre seus pais que se divorciaram. Ele foi obrigado a vir morar com sua mãe e seus avós em La Savior enquanto seu pai ficou em Londres, tomando conta dos negócios. Ele sente falta do frio, da arquitetura, da comida e dos amigos londrinos.

Não me pareceu muito justo que ele tivesse sido forçado a vir para a ensolarada Califórnia quando o que ele realmente queria era morar com o pai. Mas quem disse que a vida é justa? Fomos a primeira dupla a terminar o trabalho. Dispensados pelo Sr. Binns nos dirigimos a um estacionamento que fica a uma quadra da escola para passar o tempo.

No final das contas ter um novo parceiro não é uma má ideia. William se parece muito comigo. Temos problemas similares dentro da família, nos sentimos obrigados a participar de uma elite que não nos agrada, temos uma tendência natural ao rebeldismo. Sorri quando ele me ofereceu um cigarro. Lembrei da conversa que tive com Charles mais cedo e mais do que nunca desejei que ele fosse mais como William.

Em um ataque de coragem, contei a ele sobre os últimos acontecimentos. Não sei bem porque confiei nele, mas algo em seu modo de falar me passa segurança e calma. Seu rosto não demostrou surpresa em nenhuma parte da história e ele entende como me sinto.

Pensei em Charles e em como estou sempre a busca de sua aceitação, mas tudo é diferente com William, ele não me julgou em momento algum.

- Eu achei que a minha família era problemática - Ele sorriu, um gesto normal e inofensivo mas que por algum motivo fez borboletas dançarem no meu estomago.

Não posso negar que William é extremamente charmoso, e tudo se amplifica quando ele fala com o sotaque inglês. É óbvio que me sinto atraída por ele, mas esse sentimento me deixa com a sensação de culpa. Mas por que? Por causa do Charles? Não, nós somos só amigos. Tirei esses pensamentos da cabeça, me negando a pensar sobre o que eu e Charles poderíamos vir a ser.

- Acho que perdemos a ultima aula. Já está muito tarde, os professores não vão nos deixar entrar de um jeito ou de outro - William olhou no relógio, confirmando o que disse. Ele concordou com a cabeça enquanto um sorriso torto (bem sexy, devo acrescentar) abriu-se em seus lábios.

- Meus pais vão ficar muito felizes em saber que no primeiro dia na nova escola já estou matando aula.

Nós dois rimos com o comentário. Embora eu seja uma boa aluna, vez ou outra meus pais recebem um informativo acerca das minhas não tão raras matanças de aula. Ver seus rostos desapontados me alegra, estava dando a eles um gostinho do próprio remédio.

- Quer que te acompanhe até em casa? - A pergunta de William, apesar de normal, me deixou desconfortável. Não teria problema nenhum ele me acompanhar até em casa, mas já tinha combinado com Charles que nós iríamos para a casa dele. Para ser honesta, não gosto de me abrir com ninguém, hoje foi uma exceção que não se repetirá, deixar William me levar para casa só vai prolongar o adeus que já é tão iminente.

Claro que me abro com Charles, mas ele é praticamente da família, meu único (e espero que continue assim) amigo.

- Desculpa, mas já tenho planos com um amigo - Tentei parecer casual quando falei a palavra "amigo", escondendo o desconforto que ela me traz. Mas é a verdade, Charles e eu somos amigos.

- Amigo? - As sobrancelhas de William arquearam em dúvida.

- Sim. Amigo. - Levantei, pegando minha mochila e seguindo em direção a escola - Amanhã a gente se vê. Tchau.

Atravessei a rua sem olhar para trás, já me arrependendo de ter contato sobre minha vida para William.

Roleta RussaOnde histórias criam vida. Descubra agora