Como assim eu vivi 39 anos e nunca percebi que sou autista? Pois é... parece absurdo que uma professora com uma pós-graduação em neurociência e outra em desenvolvimento humano não tenha notado o autismo em si mesma. Mas não! Nunca pensei nisso!
Se eu sabia que era diferente? Sim, mas não. Achei que fosse só questão de prática, disponibilidade de tempo, afinidade, sei lá. Não pensei que ler tantos livros e lembrar de praticamente todas as suas histórias - ainda que alguns títulos tenham se perdido - fosse algo incomum. Nem que ter facilidade em dicionários fonológicos fosse alguma coisa relevante.
Falar com pessoas é algo complicado, sempre foi. Mas eu cresci em meio a adultos muito ocupados, então seria normal ficar o dia com as bonecas ou aprendendo coisas na televisão - ler e escrever aos 3 para 4 anos, por exemplo. Eu acreditava nisso, pelo menos... e até hoje ensaio incontáveis diálogos antes que eles sequer sejam possíveis por vários motivos (como não ter acesso à pessoa).
Estalar os dedos, mexer a perna ou as mãos, encher a bochecha de ar, enrolar a pontinha do cabelo, esfregar o indicador com o polegar, bater a caneta, ter restrições alimentares - e passar MUITO mal quando ignoradas -, incômodo com sons e luzes, lugares fechados, lugares lotados, texturas, hipersensibilidade à temperatura baixa... Não são características comuns? Até são, mas quando colocadas juntas, não.
- Vou te falar uma coisa, minha filha, você não é normal!
O psiquiatra precisava mesmo falar isso? Sim! Precisava! E ainda assim eu fico tentando me encaixar num universo neurotípico quando tem outro universo, o único que eu conhecia, martelando o meu cérebro e berrando "para de fingir o tempo todo!" - masking é o nome.
Mas fingir o que exatamente? Que eu sei o que dizer, que estou feliz e tranquila a maior parte do tempo, que eu sei o que e como fazer, que eu me importo ou que não me importo, que não estou magoada, que não estou corrigindo o que estou ouvindo, que não tenho referências a livros ou séries a partir de uma palavra que alguém disse, que não estou fazendo a análise sintática de cada frase que eu falo, que eu não sei Física, que detesto Matemática, que não sinto falta de programação, que não tem milhares de coisas acontecendo no meu cérebro enquanto estou acordada e que eu consigo dormir e descansar porque sou capaz de desligar e relaxar. Está bom para você? Porque eu consigo pensar em várias coisas além disso...
A terapia ajuda, mas não é suficiente para amenizar a autocobrança e o receio de decepcionar as pessoas. Porque, ah! Esqueci de comentar, a comorbidade que acompanha o autismo - pois o autismo sozinho é bobagem, né?! - é um negócio chamado altas habilidades. Sabe o que isso significa? Facilidade para conhecer profundamente qualquer hiperfoco que eu desenvolva/escolha e uma cobrança sobrehumana em tudo que for fazer.
Complexo de super herói talvez? Não sei! Só sei que apesar de as especificidades de cada autista parecerem superpoderes aos olhos dos outros, ninguém sabe o quanto custa ser super o tempo inteiro e o quanto isso assusta, afinal, parece que eu não tenho o direito de falhar e sempre devo estar à disposição dos fracos e oprimidos - exceto quando a oprimida sou eu mesma.
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O cativante universo de Alice
Non-FictionAos 39 anos descobrir que é autista não é algo muito feliz, principalmente quando passou todo esse tempo tentando se encaixar e tendo plena consciência de ser diferente, mas sem saber o motivo.