Apesar de parecer uma coleção de superpoderes, as sensibilidades do autismo não são tão legais assim. Na verdade, não são nada legais e, por vezes, me impedem de estar com pessoas que eu amo simplesmente porque estou à beira de uma crise, com alguma dor profunda ou não consigo me mexer.
Ouvir os menores sons é bastante interessante, pois me permite reconhecer as vozes dos meus alunos e escutar e responder uma pergunta tímida que alguém fez a um colega. Nasci com isolamento de ruído instalado e sou capaz de, em meio a várias vozes, concentrar-me em uma e captar perfeitamente o que está sendo falado. Porém, isso exige preparo psicológico.
Quando existem, contudo, várias fontes, as ondas sonoras me afogam e tenho a sensação ruim de variação de pressão que todas as pessoas notam quando vão para a praia, sabe? Meus ouvidos doem como se algo os estivesse perfurando, chego a sentir como se sangrassem. Com isso, a luminosidade passa a me incomodar também.
Por que ter apenas um sentido confuso se posso ludibriar dois ao mesmo tempo? Os sons parecem tão intensos que as luzes passam a variar de acordo com eles, quanto mais agudo o som, maior a claridade. E aí as noções de tempo e espaço se perdem. Einstein que me perdoe, mas a relatividade é falha num momento de crise sensorial! Eu não sei definir há quanto tempo estou embriagada de luzes e sons.
Consegue imaginar a "delícia"? Essa sensibilidade gera uma crise de ansiedade, quando o corpo inteiro entra em alerta e modo de fuga. Em shows, por exemplo, se eu não vejo uma rota clara de saída, entro em crise e faço um esforço hercúleo para não fechar os olhos e os ouvidos e começar a me chacoalhar (sabe o movimento estereotipado que todo mundo imagina quando ouve "autista"? Este mesmo!).
Atravessar a passarela quando há um trem passando embaixo é impossível! Tenho certeza de ouvir cada parafuso rangendo e soltando meia volta, as madeiras dilatando, o metal sendo desgastado e os elétrons passando no cabo de energia. Dói se eu tentar andar. Cada músculo que eu forço para correr dói muito. Afinal, a respiração acelerada impede que haja a devida oxigenação, inclusive no cérebro que está criando a cena do meu corpo caindo sobre o trem em resolução Ultra HD que daria inveja à Samsung.
Multidões e lugares fechados, então, são um pesadelo! Muitos cheiros, muitas vozes, muitos toques... só uma coisa é capaz de anular todo o cortisol que se acumula nestes momentos de depressão: anular os estímulos. Nessa hora vem, geralmente, o meu herói - vulgarmente conhecido por marido ou Murilo - e abraça a minha cabeça, restringindo a minha visão, diminuindo o som e me deixando com o cheiro de paz que ele tem.
A vantagem disso tudo é aprender a controlar e usar em meu favor de vez em quando. A desvantagem é não conseguir controlar o tempo inteiro e acordar sem saber se esses "opcionais de fábrica" estão ativados ou não. Então, já sabe, se quiser ter certeza de que estou escutando e entendendo exatamente o que estiver falando, vai ter que pedir um sinal visual de confirmação.
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O cativante universo de Alice
Non-FictionAos 39 anos descobrir que é autista não é algo muito feliz, principalmente quando passou todo esse tempo tentando se encaixar e tendo plena consciência de ser diferente, mas sem saber o motivo.