Ninguém avisou Alice de que os questionários para o laudo de autismo eram tão cansativos! Tantas e tantas perguntas para verificar se ela não caía em contradição, se suas sensações são genuínas, quais as comorbidades associadas.
"Classifique de 1 a 4, sendo 1 = nunca e 4 = sempre."
"Classifique de 1 a 7, prefira não usar a nota 4."
"Responda A, B, C, D ou E."
"Numa escala de 0 a 5, determine a frequência."
"Você tem pessoas que..."
"Em quantas pessoas você pensa quando..."
"O que você acha que as pessoas pensam sobre seu comportamento? Classifique de 0 a 5."
"Como você reage nas situações a seguir? Classifique de 1 a 7."
Gente, que boring tudo isso! E, enquanto respondia, fazendo esforço para se concentrar em cada frase e responder o mais sinceramente possível, a neuropsicóloga de unhas compridas digitava um livro naqueles teclados que fazem barulhos só de olhar. Alice quase enlouqueceu! No último dia de intermináveis classificações, depois de um período extenuante no trabalho, Alice não aguentou:
- Você se incomoda se eu colocar meus fones para me concentrar melhor, por favor?
- Claro! Fique à vontade!
- Obrigada!
- Esse fonezinho funciona?
- Sim, ele tem cancelamento de ruído.
- Mas aí você não escuta nada ao seu redor?
- Escuto. É um fone inteligente. Enquanto eu falo, o cancelamento fica inativo, quando eu paro de falar, ele tem 30 segundos de tolerância, depois me isola do barulho externo.
- Me passa o modelo e a marca, por favor, eu vou indicar para outros pacientes.
- Passo. Posso terminar de responder? - ela queria terminar logo.
E Alice foi obrigada a rever todas as 356.9823.214 perguntas anteriores para voltar ao raciocínio e continuar as próximas 256.534 análises. Terminado o ENEM da neurodivergência, eis que a neuropsicóloga vem com a notícia:
- Seu laudo demora mais ou menos 60 dias para ser emitido, mas já está confirmado desde o primeiro teste. Você tem todas as respostas condizentes ao quadro e eu estou vendo você, seu comportamento. Além disso, eu poderia ficar com você por seis meses e jamais a conheceria tão bem quanto a sua psicóloga, que já falou que você é autista, então não tenho dúvidas disso!
- E agora?
- Agora, você vem semana que vem para a última entrevista e depois é só esperar eu entrar em contato para vir buscar o laudo e finalizar a parte burocrática.
- É só isso?
- Sim.
Mas e agora? O que muda na vida de Alice? Ela se sente confusa, apesar de já estar convencida há meses de que este é seu diagnóstico. Foi um alívio meses atrás, mas agora que tudo foi confirmado, parece que o rótulo foi fixado e ainda assim nada mudou. O mundo continua do mesmo jeito incômodo de sempre; as pessoas continuam igualmente irritantes, enervantes ou acolhedoras; os ruídos continuam machucando seus ouvidos e as luzes ferindo seus olhos; a ansiedade continua dando enxaqueca e enjoo.
Alice continua a mesma: pensando demais e problematizando até seu próprio laudo!
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O cativante universo de Alice
Non-FictionAos 39 anos descobrir que é autista não é algo muito feliz, principalmente quando passou todo esse tempo tentando se encaixar e tendo plena consciência de ser diferente, mas sem saber o motivo.