Descobrir que sou autista não foi exatamente a parte mais difícil da brincadeira, complicado foi dizer às pessoas. Tanto que para muitas eu nem cogitei contar! Talvez descobrir lendo essas crônicas seja mais divertido? Não sei... elas que lidem com isso!
A família, no geral, não seria um desafio, porém foi difícil entender que eles jamais perceberam. Tudo bem, há 35 anos mal se falava sobre neurodesenvolvimento, é claro que meus pais sabiam que eu era diferente, mas colocaram tudo na conta da inteligência. Além disso, acabei ficando boa no masking desde cedo. Eu já era baixinha e gordinha, não tinha muito espaço para os amigos, mostrar o quanto eu era mais inteligente não fazia parte dos planos.
Meu irmão e minha cunhada receberam a notícia como se eu dissesse "eu tenho dois olhos". Parece que só constatei o óbvio e avisei sobre. Ajudou a me sentir normal! "It's not a big deal!", "solo un gran alivio!" (sim, às vezes eu misturo os idiomas nos pensamentos, principalmente quando fico nervosa).
Os amigos não poderiam ser melhores! São poucos por obviedade, mas os melhores! O acolhimento foi indescritível! Tive a sensação de que todos já eram conscientes disso antes de mim e foi apenas como dizer: "sim, pessoal, aquilo que vocês já imaginavam é verdade!". Quase um chá revelação de neurodivergência!
Contudo, existia uma pessoa que me assustava e não era pouco: Murilo, meu marido. Como, passados quase 12 anos de relacionamento, eu diria a esta pessoa que convive comigo e me conhece há 27 anos que, na realidade, conhece uma personagem que eu criei para conviver em sociedade sem me machucar tanto?
Eu teria que explicar a ele que a pessoa por quem se apaixonou foi 50% real, com medos, restrições e manias e 50% criada para ser aceita num mundo que enxerga e sente coisas de um jeito completamente diferente! Como você contaria?
Crises internas, noites sem dormir, lágrimas, desespero, ansiedade constante, enjoo diário e muito, muito treino para tentar manter a expressão impassível (ainda bem que amo teatro!). Como você decepciona a pessoa que tem seu lar num abraço? Que tem cheiro de paz? Que é seu abrigo em forma de colo?
Vou te dar um tempinho para voltar a respirar depois de todo o desconforto que você teve ao perceber o meu desespero ("wellcome to my brain"), acho saudável...Todos prontos? Lá vai:
- Murilo, acho que eu sou autista.
- Você já falou com a psicóloga sobre isso, Alice?
- Sim.
- E o que ela disse?
- Que eu sou uma sobrevivente, porque me adaptei a tudo a vida inteira, mas é óbvio que eu sou autista!
- Então tá. O que você precisa?
- Aprender a me reconhecer e entender o que é meu e o que sempre fiz para me encaixar no mundo normal.
- Tudo bem. Vamos aprender juntos! Eu vou fazer o melhor que puder para deixar sua vida o mais confortável possível!Pois é... marido fofo, parceiro, estereótipo de TDAH: eu pratico... aliás, tenho!
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O cativante universo de Alice
Non-FictionAos 39 anos descobrir que é autista não é algo muito feliz, principalmente quando passou todo esse tempo tentando se encaixar e tendo plena consciência de ser diferente, mas sem saber o motivo.