Alice tem uma dificuldade imensa em demonstrar com frequência o que está sentindo de verdade. Parte por estar sempre com a mente agitada, o que a faz ter sensações diversas em poucos segundos, parte por ter treinado a vida toda para ser o estereótipo de "boa menina". É bom, por um lado, pois deu certo o treinamento: ela é educada, tenta ajudar quando pode (e se desdobra para poder com frequência), gentil e não fala palavrões. Mas - tem uma adversidade - ela não consegue ter a sensação primeira e reagir conforme isso.
Exemplo prático e rápido: ela passa mal com alguns tipos de alimentos - a seletividade alimentar é real, tá bom?! - e, ainda assim, se for convidada a uma refeição com alguém que não saiba de suas restrições e só houver algo que não comeria, ela não diz uma palavra. Alice come, é educada o suficiente para fazer um elogio ao prato e, depois de poucos minutos, dirige-se discretamente ao banheiro para tomar os remédios que diminuem seu enjoo, e volta para casa antes de piorar demais.
Ela sempre finge que está tudo bem, que tudo vai dar certo, que nada a afeta ou preocupa, quando na realidade, vive ansiosa, desesperada, surtada com prazos e angustiada imaginando que nunca tem tempo o suficiente. E uma crise de shutdown? É avassaladora! Alice não consegue reagir, sente-se terrivelmente mal, incapaz de compreender coisas simples, amenidades quaisquer, e a sensação piora por sempre ter muitas atividades para corrigir ou planejamentos para terminar. Após o diagnóstico, ela aprendeu que pode dormir.
Crises de meltdown são raras, mas acontecem. São incomuns exatamente pelo fato de Alice não demonstrar tão bem as emoções. Ela se irrita com facilidade, com qualquer coisa que fuja à rotina ou ao que havia planejado, mas conta até 10 - geralmente várias vezes - e respira fundo antes de responder qualquer coisa de que talvez se arrependa depois. O problema: ela costuma se arrepender por não ter respondido algo que fosse bom para si, e colocar as prioridades dos outros à frente das suas.
Sorri na maioria das vezes, responde sim constantemente sem pensar em benefício próprio e se prejudica em prol do todo. Isso acontece principalmente no trabalho, onde tenta ser "legal" e passa o ano com problemas de horário, por exemplo. Perde horas na escola, quando poderia estar trabalhando, sim, mas no conforto do seu lar, com seu amigo silêncio e as gatas ajudando-a na regulação constante, podendo parar antes de um surto e ir dormir, se necessário.
Outros detalhes sobre a moça: todas as vezes que fica nervosa, desata a falar coisas (até pessoais) sem sentido ou sem contexto, mas o silêncio dos amigos a incomoda. Parece que deve ser preenchido com alguma coisa que gere conexão. É assim que se faz/conserva uma amizade? Ademais, precisa ficar com o "modo amigos" ligado o tempo inteiro para entender ironias e brincadeiras. É cansativo, mas garante que consiga participar de grande parte das conversas sem passar vergonha por não entender alguma coisa. Ela somente precisa estar preparada para essa interpretação.
Por falar em vergonha, nada supera a capacidade de disfarçar aquela que sente em ser o centro das atenções. Pois é... Alice é professora e M-O-R-R-E de vergonha de ser o ponto focal de uma conversa. Dá para acreditar? Quando está no "modo professora", contudo, sua cabeça fica tão ocupada fazendo relações e buscando exemplos de que os alunos possam gostar e com os quais entendam melhor o conteúdo, que não percebe o quadro geral. A adrenalina é tanta que torna o momento possível.
Masking é uma das maiores habilidades de Alice. Entretanto, é realmente necessário todo esse esforço para viver bem? Neurotípicos têm isso também? A vida de atriz cansa, sabia?
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O cativante universo de Alice
Non-FictionAos 39 anos descobrir que é autista não é algo muito feliz, principalmente quando passou todo esse tempo tentando se encaixar e tendo plena consciência de ser diferente, mas sem saber o motivo.