É comum que adultos diagnosticados autistas tardiamente criem um hiperfoco no transtorno. Alice não foi diferente, é claro, especialmente sendo o maior foco da vida dela o estudo!
Mas será que alguém é capaz de imaginar o quão estranho deve ser fazer pesquisas, ler artigos e livros e perceber que aquelas pessoas sabem definir melhor do que ela mesma tudo que se passa na própria cabeça? Tudo que ela sente? As "manias" dela? Deve ser no mínimo muito esquisito!
Alice percebeu que não precisava ficar o tempo inteiro com todos os mecanismos de convivência social acionados. Ela podia, simplesmente, ser do jeito que ela sabia ser. Mas ela não sabia exatamente como era... e essa descoberta foi confusa e trabalhosa!
De repente o trânsito ficou pesado demais para ela conseguir ficar no banco da frente e de olhos abertos. O barulho da televisão incomodava mais. Alguns cheiros lhe despertavam náuseas e outros lhe traziam calma. As interações sociais eram mais difíceis. Ficar sozinha assustava mais. Brincar com as bochechas cheias de ar, mexer as mãos e os pés ajudavam a pensar melhor. Ela não olhava para os rostos de todas as pessoas para conversar e isso lhe permitia alívio. Os fones de ouvido viraram seus melhores amigos.
Eram muitas mudanças. Uma regressão, talvez, mas um alívio. Alice não se sentia bem por ser autista, mas sentia-se bem podendo ser autista perto das pessoas. Parecia que agora ela teria uma "desculpa" para suas peculiaridades. Uma desculpa não, um motivo, uma explicação. E aqueles livros e textos faziam sentido para ela.
Alice passou a escrever sobre suas sensações e impressões e percebeu que era mais fácil de explicar para as pessoas amadas quando escrevia do que quando falava. Ela conseguia controlar melhor as palavras e não havia alguém olhando para ela, esperando uma ação ou uma reação. Ela podia somente "dizer" tudo e voltar para corrigir, apagar, rascunhar e passar a limpo aquilo que as palavras permitiam traduzir de seu íntimo desconhecido e desorganizado.
Escrever era sair do seu cérebro e olhá-lo como terceira pessoa, ajudava a colocar os pensamentos em ordem e entender suas sensações. Cada crônica era um alívio de uma aflição que, às vezes, ela só notava quando terminava o texto e decidia um título. Era uma vida nova, mas não completamente desconhecida. Alice resgatava de uma masmorra a pessoa que ela mesma enclausurou desde quando se entendeu por gente.
Cada palavra era um passinho para dentro de si mesma. E ela estava saltitando por esse novo caminho, batendo palmas e cantarolando guturalmente todas as poucas músicas que conhecia e de que gostava! Alice tinha entrado no seu mundinho e percebido que ele era todo colorido e podia fazer parte do mundo das pessoas que ela amava e a amavam. Ela passou a ser autista e não ter vergonha. Ter orgulho de si, mesmo que pedisse desculpas por ser autista de vez em quando... afinal, não existe o País das Maravilhas, só um novo universo!
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O cativante universo de Alice
No FicciónAos 39 anos descobrir que é autista não é algo muito feliz, principalmente quando passou todo esse tempo tentando se encaixar e tendo plena consciência de ser diferente, mas sem saber o motivo.