Realmente, acho que já mencionei isso, mas é algo recorrente nos meus pensamentos, então vou repetir: autismo sozinho é bobagem, né?! Precisa trazer comorbidades!
E eu tenho altas habilidades, olha que legal! Quase um super poder, porque me permitiu - sozinha - sentar aos 4 meses de idade, andar aos 9, aprender a ler e a escrever aos 3 anos, fazer contas básicas aos 4, levar um título de xadrez para a escola aos 12 anos, ser a melhor aluna a vida toda em todas as matérias, fazer 8 cursos de especialização e passar em 9 de 10 concursos feitos ao longo da história. Isso além da biblioteca que guardo na memória e das relações malucas que faço com literatura.
Quer um exemplo? Numa noite de jogos em casa, estávamos fazendo mímicas, quando meu parceiro fez um pássaro e eu precisaria identificar a espécie do pássaro.
- Cotovia!
- Alice, está certo, mas como? Como assim você acertou essa palavra tão aleatória?
- Fácil! Está num soneto de Shakespeare na peça Romeu e Julieta, ele diz que precisa ir embora por já ter ouvido o canto da cotovia e ela...
- Tá! Ok... Literatura...
É... e é por isso que meus amigos não me deixam jogar Perfil. Dizem que eu memorizei as 20 dicas em mais de 400 cartas, mas não. Eu juro, juradinho! Só tem coisas para as quais eu crio relações com sentido para mim e, por isso, ficam mais fáceis de lembrar.
- Araquém Alcântara!
- Sim, é o fotógrafo. Mas quem lembra esse nome?
- Fácil! É o nome do pai da Iracema, no livro do José de Alencar. Alcântara, além de ser um dos sobrenomes de Dom Pedro (seja o primeiro ou o segundo), é sobrenome do Antônio de Alcântara Machado, que escreveu Brás, Bexiga e Barra Funda.
Ademais, quando estou assistindo a algum filme ou a alguma série, a ecolalia (repetição mental de palavra ou expressão) faz com que eu lembre qualquer coisa relacionada à literatura cânone ou não (às vezes). Vou tentar tornar isso mais simples.
Você está conversando com alguém de quem gosta e sobre um assunto no qual tem interesse, de repente ouve uma palavra ou expressão que te dá a sensação de deja vú e isso faz com que diminua o volume da voz daquela pessoa e saia correndo entre estantes de uma biblioteca com livros do chão ao teto. Você corre de um lado para o outro procurando um livro exato, mas alguns não têm o título na lombada, então precisa pegar vários e folheá-los em busca daqueles signos que despertaram o incômodo. Quando acha, volta correndo para a conversa, aumenta o volume de novo, interage e fica controlando a ansiedade para não ser rude e interromper a pessoa que continuou falando, mas agora já mudou de assunto e o novo tema te dá outro deja vú.
Mas, de novo, era óbvio desde criança e, ainda assim, quando a psicóloga falou, foi um choque. Por que eu não entrei na universidade que eu queria? Por que tive dificuldade em me encaixar num trabalho? Por que meu salário não condiz com meu conhecimento? Qual a cura do câncer? E a da AIDS? O que posso fazer para erradicar a fome no mundo? Como assim essas altas habilidades não me ajudam a resolver todos os problemas?
- Simples! Elas te geram uma autocobrança imensurável e um forte catastrofismo, eles a bloqueiam em diversas áreas, Alice.
Parece que a terapeuta ainda terá um longo trabalho pela frente...
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O cativante universo de Alice
Non-FictionAos 39 anos descobrir que é autista não é algo muito feliz, principalmente quando passou todo esse tempo tentando se encaixar e tendo plena consciência de ser diferente, mas sem saber o motivo.