Enterro Coletivo

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Às duas e dez da madrugada todo o perímetro que cercava o colégio em até duzentos metros foi evacuado. As três e quarenta um, aquele quarteirão ouviu o último grito do monstro e ele despencou de cima, levando para o chão as paredes, salas, carteiras e quadros. Cento e dois anos de histórias desmoronaram, todo o ódio, rancor, todas as mentiras, as lágrimas e os sorrisos, todas as lembranças viraram fumaça preta. Enquanto os segredos e a verdade repousaram perdidos debaixo dos escombros.

Fomos interrogados por horas, a polícia queria saber o que houve, quem começou o incêndio, mas ninguém parecia compreender o que dizíamos. A única coisa que eles tinham certeza era que o fogo tinha começado de propósito. Mas a versão completa não lhes fazia sentido algum, no começo eu tentei explicar, porém eu sendo a senhorita Brianna Collins não merecia muita atenção. Fui, digamos, acusada antes de ser ouvida, é trash, mas acontece, gostam de pôr a culpa em mim e isso me afetou, decidi ficar na minha e fui vaga no restante do meu testemunho.

O Aaron não queria estar na delegacia, então basicamente na metade do "inquérito" ele se levantou e disse que não dava a mínima para aquilo ou para os jornalistas que esperavam respostas. Isso irritou o detetive Hill, mas o Sr. Muller alegou que seu filho estava sofrendo de estresse pós-traumático, então por hora ele foi liberado. Sobraram apenas o Elliot e a Charlotte tentando explicar o que aconteceu, porém o Elliot não presenciou os acontecimentos desde o começo, logo seu relato não teve muita relevância. Lotte despejou palavras sem ao menos parar para respirar e até para mim que participou de tudo, ficou meio confuso.

Por fim concluíram que a Megan foi a assassina da Mackenzie, mas no fundo isso foi apenas o que os jornais passaram para a sociedade. Em sua ficha ainda está escrito caso em aberto "falta de provas", porém saber o que aconteceu já me é suficiente. O incêndio foi dado como criminoso e se espalhou tão rápido por causa da querosene espalhada pela nossa assassina. Não foi publicado quem de fato acendeu a chama, não combinamos, mas na hora nenhum de nós quatro contou que foi o Aaron, então esse é outra lacuna no relatório investigativo. Ainda não conseguiram entender o envolvimento do Marcel no caso, segunda lacuna. Também não contamos que foi o Dylan que atirou na Megan, mas como o corpo dela virou poeira, sua morte foi dada como consequência do incêndio.

De todo as notícias da semana seguinte, e devo dizer que elas alcançaram âmbito internacional (tenho certeza que aonde a Mackenzie estiver ela está se divertindo com o seu rosto estampado nas televisões do mundo), foram contadas com vários buracos. Focaram na criatura odiosa como ponto de partida para todas as tragédias seguintes e repetiram incansavelmente as histórias de vida dos falecidos. Inventaram motivos impensáveis, para justificar o que levou a Megan a fazer o que fez, sim mais uma vez omitimos a verdade, não contando sobre o caso Dylan/Mackenzie. E quanto ao diário, acho que ele se perdeu, os pais da Sasha não o encontraram, e se o fizeram decidiram não entregar para as autoridades, o que eu acho ótimo. Não seria bom para quem quer recomeçar, ver sua vida espalhada ao mundo pela visão de outra pessoa.

Alguns repórteres quiseram me entrevistar, mas eu neguei veemente todos os convites. Escolhi assim, ou melhor dizendo eu e os sobreviventes escolhemos assim, guardar para nós os detalhes que dão vida a todo esse infortúnio. Um dia vamos morrer e a versão completa e original daquela noite se juntará as partes que se perderam durante o desmoronamento. Melhor assim, esse restinho de mistério, transformará o local em um lugar assombroso e enigmático, o cemitério de nossas vidas. Por que para aqueles que saíram dele, não haverá esquecimento, tudo que aconteceu continuará aparecendo constantemente em nossos sonhos. Viramos a história que ganhou a chance de queimar devagar por mais alguns anos.

Estamos indo para o enterro deles, eu mamãe e o Elliot. A prefeitura organizou uma cerimônia religiosa na igreja da cidade ontem, mas eu não fui, não estava com vontade de ouvir discursos intermináveis de alunos que se achavam próximos deles para dizer alguma coisa. Sinceramente, os únicos que poderiam fazer uma homenagem verdadeira e de coração para um deles, também está morto, e o Aaron, bem duvido muito que ele tenha ido.

A Noite Dos PavõesOnde histórias criam vida. Descubra agora