Miranda caminhava de um lado para o outro sem conseguir conter o próprio nervosismo. Não era da sua personalidade se deixar abalar dessa forma, mas não conseguia se livrar da terrível sensação de que tinha alguma coisa muito errada acontecendo. Se mover era a única maneira de extravasar parte da ansiedade que estava sentindo desde que recebeu a mensagem urgente de Hookah e deixou sua cidade às pressas de volta ao coração da capital vermelha no meio da madrugada, agora, o céu começava a ganhar tons de um amarelo fraco no horizonte e o vento fresco do início da primavera trazia os cheiros das árvores dos jardins superiores. Era um dia muito parecido com aquele quando ela deixou o castelo vermelho anos atrás. Quando deu as costas à coroa do império Lester e a sua irmã para seguir seu próprio caminho. Nunca imaginou que um dia estaria de volta àquele lugar e nem que veria aquela paisagem com seus próprios olhos.
Sua irmã, sentada num dos divãs de descanso da torre, era a representação perfeita de uma Lester. As mãos estavam apoiadas no colo e alisavam distraidamente os detalhes de fios de ouro bordados em seu vestido vermelho, o Sol constante da cidade tinha bronzeado sua pele e o peso de carregar sozinha um reino tinha mudado a expressão em seus olhos escuros. Elas sempre foram muito parecidas desde crianças, mas não eram idênticas, mesmo que fossem gêmeas. Enquanto Elizabeth herdou os cabelos ondulados e escuros, a boca reta e o nariz arrebitado do pai, Miranda herdou o loiro dos cabelos e as maçãs do rosto acentuadas da mãe. A única coisa que realmente tinham em comum, na aparência, eram os olhos. Dourados como todo Lester deveria ser. Os anos em Marmoreal retiraram o bronzeado da pele de Miranda e as ondas de seus cabelos. Agora que estava ali, se sentia como um fantasma.
Elizabeth só tinha lhe dito três palavras desde que a viu, assim que atravessou o Portal no coração do castelo vermelho: espere no jardim. Miranda sabia que seria assim, ela tinha causado aquilo, mesmo assim, não estava preparada para ver a rejeição no olhar de Elizabeth. A mesma Elizabeth com quem ela brincava nos jardins do castelo, com quem brigava por causa de espadas e de joias, a mesma irmã que lhe salvou tantas vezes na guerra e que jurou protegê-la para sempre. Não existia mais nada de carinhoso no olhar da irmã, apenas calma e desinteresse, como se estivesse ao lado de qualquer desconhecido.
Quando o Oráculo finalmente apareceu, descalço e com cada centímetro de pele exposta coberta por tinta multicolorida, Miranda quis chorar de alívio. Hookah era, facilmente, a criatura mais complexa e misteriosa que Miranda já tinha conhecido ou ouvido falar. Ele estava lá desde sempre, todas as famílias reais e todos os livros de história citavam seu nome como porta-voz dos deuses, ele era velho, não restavam dúvidas, mas ninguém sabia o quanto. Ele não era alto como os elfos, nem tinha as orelhas pontudas ou os dentes para ser um, também não era um animato, embora, às vezes aparecesse com alguma característica animal. Ele talvez fosse um deus menor, era nisso que Miranda acreditava, um filho da casa Nuthard deixado no mundo mortal para transmitir a vontade dos deuses. Talvez ele fosse amaldiçoado por tentar ser um deus, Elizabeth dizia. Fosse como fosse, Hookah estava além de qualquer lenda ou superstição e quando o Oráculo falava, era sábio ouvi-lo. Miranda sabia que era somente por isso que Elizabeth tinha permitido que ela usasse um Portal até o castelo vermelho, o Oráculo tinha sido bem claro em sua mensagem ao requerer a presença das duas irmãs na reunião daquela manhã.
Hookah encarou as duas com uma expressão maliciosa no olhar que arrepiava a espinha de Miranda, fazia-a se lembrar de quando o viu pela primeira vez, naquele mesmo castelo. Na época, ela e Elizabeth eram duas crianças e o Oráculo tinha sido requisitado por sua mãe, a rainha Clarklise Lester. Elas deveriam estar com os tutores para as aulas da tarde naquele dia, mas Elizabeth estava morrendo de curiosidade para saber como era o Oráculo e convenceu Miranda a se esconderem no salão do trono para espionar a conversa da mãe. Ele tinha exatamente a mesma aparência, um rosto coberto por tinta, com dois pares de olhos redondos como os de uma aranha e um nariz fino e pequeno. Os lábios eram finos e a boca larga e ele parecia ter o dobro de dentes que uma pessoa normal. Quando alcançou o centro do salão, não se ajoelhou perante a rainha, mas olhou na direção das duas princesas escondidas atrás das cortinas e sorriu como se soubesse exatamente o que elas estavam pensando. Como se soubesse exatamente como elas seriam punidas naquela noite por matar aula. Miranda ainda tinha pesadelos com aquele sorriso.
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Alice no País das Sombras [EM REVISÃO]
FantastikDe volta ao Submundo, a pequena e curiosa Alice é somente uma memória desbotada e frágil dentro de uma mente caótica e sombria. Agora, mais do que nunca, Alice deseja o sangue e a cabeça de seus inimigos e não irá medir esforços para alcançar a coro...