Daniel passou os dias que se seguiram entretido, olhando sites sobre o Canadá, sobre algumas das possíveis escolas em que ele estudaria por lá. Daniel também mandou uma mensagem via Facebook para sua irmã, pedindo por seu endereço exato, uma que Daniel faria a ela uma visita. Apesar do longo hiato sem se encontrarem, ele e sua irmã sempre tiveram um bom relacionamento entre si. Já com o pai...
Após o infame porre daquele dia, Daniel falava só o estritamente necessário com seu pai, como:
- A dona Eleonora veio cobrar os dois aluguéis. Ela tá esperando, só não sei até quando...
Ou:
- Tem arroz na geladeira, é só esquentar se quiser.
Seu pai até tentava puxar um papo qualquer com Daniel, que apenas concordava ou discordava com a cabeça, isso quando não deixava o seu velho literalmente "no vácuo". É que Daniel já sabia: um ou dois dias após aprontar, o comportamento de seu pai era diferente. Bebia menos. Tentava puxar algum papo qualquer, como futebol – algo que Daniel abominava, diga-se de passagem – só para tentar minimizar o estrago já feito.
Contudo, como Daniel também já sabia de antemão, do terceiro dia em diante seu velho voltava a ser aquele de sempre: um bêbado resmungão, irascível, por vezes até violento. Mas um belo dia seu pai chegou todo sorridente em casa. Estava até mais ajeitado do que do normal, com um gel no cabelo e usando uma camisa de seda, daquelas que ele só usava se tinha alguma festa para ir. Junto dele, a tradicional sacola de mercado. Já foi anunciando, na chegada:
- Acabei de pagar a dona Eleonora. Esse mês e o outro que tava atrasado! – falou enquanto tirava o conteúdo das sacolas.
- Uau... que ótimo... – disse Daniel, incerto de como o pai havia conseguido o dinheiro.
- Hoje recebi uma homenagem na empresa, por 25 anos de contribuição. Recebi 1000 reais deles, e aí juntei com o que sobrou do salário do mês pra pagar a nanica.
- Ah que bom, pelo menos não preciso mais desviar dela no caminho...
- E para bebemorar, hoje teremos... tchan, tchau, tchan... tequila para degustar! – Nessa hora seu pai mostrou a garrafa de Jose Cuervo Oro para Daniel, mais um saco de limões.
- Hum... legal. – foi só o que Daniel disse, ao ver a cena da cadeira do computador: seu pai, com a garrafa e o saco de limões sobre a bancada que servia de divisória entre a cozinha e a sala (também conhecida como "quarto" de Daniel à noite), agora já pegando um saco de sal, e colocando uma pequena porção num prato. Junto dele, cortou várias rodelas de limão, e botou dois copinhos ao lado, convocando Daniel:
- Hoje vamos beber! Venha cá, Daniel.
Daniel viu o pai servir as duas doses, mesmo ele sabendo que Daniel não curtia álcool.
- Venha cá Dani, venha tomar pelo menos uma com seu velho aqui!
Daniel levantou da cadeira, mesmo a contragosto e se dirigiu à bancada, do lado oposto a seu pai. Ao som aleatório do computador tocava "I Want to Break Free", do Queen.
- Nossa, essa era do meu tempo... – disse o pai, para em seguida virar sua primeira dose e chupar uma rodela de limão. Daniel observou como ele fazia, o sal primeiro, a dose... e repetiu o mesmo processo.
- Huuuh... é forte essa porra! – disse Daniel após virar sua dose.
- Isso é bom demais, isso sim! – nesse momento, seu pai virou mais uma dose, e já servia a terceira. Daniel pegou um cigarro dos do maço do pai, uma que os seus já haviam terminado, e voltou ao computador.
- Ieeeeee... – seu pai urrou ao virar a terceira dose; prontamente, já serviu a quarta.
Ao olhar pra tela do computador, Daniel viu a mensagem de sua irmã no Facebook, lhe dizendo o endereço de seu apartamento. Dani na hora pegou papel e caneta e anotou, guardando-o dentro de sua carteira. Sua irmã pedia que Daniel a visitasse logo, pois sentia muita saudade do irmão. Enquanto isso, seu pai já virava a quinta dose, e de relance, viu na tela do computador a foto do que parecia ser sua filha.
- Meu Deus... É mesmo quem eu to pensando? Você tem essa mal-agradecida da sua irmã aí como amiga na internet, Daniel?
Dani se apressou em fechar a página do Face.
- Sim, tenho. Mas ela quase nunca entra ali.
- O que essa vadia desgraçada anda fazendo da vida? – perguntou ele, já autoritário e mostrando na voz os primeiros sinais de embriaguez. Daniel virou sua cadeira na direção do pai, e disse:
- Não sei. Vamos mudar o assunto? – sugeriu.
- Venha tomar mais uma aqui, Dani. Tá aqui o copinho, filho – e virou mais uma dose, sabe-se lá qual era o seu número.
- Chega, eu não vou mais beber, pai. Uma já me deixou tonto, não quero saber disso aí – o que era verdade, uma que Daniel só bebia, e pouco, em raríssimas ocasiões.
- Então vem sentar nesse banco aqui, pertinho de mim. Vamo, a gente vive sempre longe. Já chega essa putinha da sua irmã que nos abandonou, hein? Venha cá comigo, Daniel!
Contrariado, Daniel foi para perto do pai novamente, mesmo não gostando das palavras que ele usava para referir-se à sua irmã. No som, tocava "Dancing Queen" do Abba.
- Que musicão! Essa eu nem conhecia sua mãe e já tocava há tempos no rádio...
Daniel esticou a mão para pegar mais um cigarro do maço do pai, que na hora pôs-se a segurar com força o pulso do filho. Olhando nos olhos de Daniel, disse:
- E é bom o senhor me agradecer por esse cigarro, seu moleque de merda!!!
Daniel se desvencilhou do pai, e disse: - Eu, hein? - para finalmente acender o cigarro. Após virar mais uma dose, seu pai veio de novo:
- Se não sou eu nesta casa, a gente já tava embaixo da ponte!
Daniel, sentado no banco oposto da bancada, só fitava o pai como quem dissesse: "já sei essa história... de novo?"
- E ainda por cima, nem para ouvir um "obrigado" sequer. 25 anos de trabalho na fábrica, para dar o melhor pra vocês, e nem um obrigado eu não ganho!
- Ok pai, obrigado. Tá bom? - disse Daniel, tentando amenizar o clima que já estava pesado.
- Primeiro, a desgraça com a sua mãe. Um câncer fulminante, pra arrebentar. Depois, sua irmã que foge de casa pra, pra...
- Tá bom, e eu? Por que você implica tanto comigo? - pediu Daniel, uma que o pai parecia não arrumar palavras para classificar a filha.
- Por que?? Você ainda me pergunta "por quê?"
Nessa hora o pai largou uma mão do copo para com as duas mãos agarrar as orelhas do filho, mais uns fios de cabelo junto, com força. Disse, olho no olho:
- Você não passa dum merda, Daniel. Um inútil que não faz nada. Nem pro próprio cigarro você tem. Se não sou eu, você tá morto, seu...
- Ai, ai... Tá machucando, porra!!! - dizia Daniel, sentindo como se suas orelhas estivessem sendo arrancadas.
- ... saiba que aqui, quem manda sou eu!!! Você nem pense em me deixar, porque você não ia viver um dia lá fora, seu merdinha duma figa, seu...
Quase sem mexer a cabeça, Daniel apalpou com a mão direita na bancada, e pegou o cinzeiro de vidro. Num movimento rápido e forte, bateu com o cinzeiro na testa de seu pai, que na hora largou suas orelhas.
Daniel pulou para trás, e viu um pequeno corte sangrando na testa do pai. Que na hora, passou a mão na própria cabeça, para em seguida pegar um dos copos vazios e arremessar com toda a força na direção de Daniel. Que, desviou-se, deixando o copinho se espatifar na parede. Daniel não pensou duas vezes e correu pra porta, para fugir do que já tinha se tornado uma briga. Seu pai ainda tentou agarra-lo dentro de casa, mas com seu peso todo e mais um joelho que o fazia andar com dificuldade, não obteve sucesso. Ainda berrou, enquanto Daniel já estava na rua:
- Seu bichinha, volta aqui que eu te arrebento todo!!!!
Quando finalmente parou de correr, Daniel já tinha deixado o seu condomínio para trás. Alguns vizinhos notaram a cena, que já não era novidade por ali. Indignado, Daniel chutou a parede com a sola do pé, e falou sozinho:
- Desgraçado, desgraçado!!!
Foi quando viu apontar o ônibus que o deixaria no terminal. Não pensou duas vezes, e entrou na hora para dentro dele. Dali, ele iria direto para o apartamento de sua irmã. Não havia nenhuma condição de ele voltar para casa.
No caminho do ônibus, Daniel estava com a música "The End" do The Doors em sua cabeça; era a música que tocava quando a briga com seu pai estourou. Coincidência ou não, o título da música refletia bem o atual momento da relação entre ambos...

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Fuga
Mister / ThrillerO destino de quatro pessoas vai mudando drasticamente, ao mesmo tempo em que o país onde vivem sofre uma inédita onda de ataques terroristas.