O Susto

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Daniel ouviu o alerta de WhatsApp. Curioso, tirou o smartphone do bolso e leu:
De: Cristine
"Visto concedido, Dani! Agora, é só escolher a passagem... que demais!"
Daniel mandou Smileys de alegria para irmã seguido da mensagem:
"Você merece, Cris. Show!"
"E aí, já pegou as suas coisas no pai? To pensando em pedir sushi pra gente comemorar!"
"Massa, sushi é do caralho!!! To dentro."
"Então, o que tá esperando? Você ainda vai falar com o pai?"
" Vou, né. Esse pau no cu precisa saber que to saindo daqui"
"Ai Dani, se cuida! Não quero que você se machuque, hein? Precisamos decidir sobre o seu curso no exterior também, lembra?"
"É, a moça da agência até me ligou antes, só que não atendi. Mas vamos ver o que fica melhor. Assim que eu terminar aqui, te mando um Whats, belê mana?
"OK. Mas se cuida com o pai; que tal se você deixasse a síndica avisada? Se ela ouvir algum barulho, chama a polícia daí...".
Daniel demorou um pouco a responder. Pensou que dona Eleonora ficaria ali, de ouvido na porta, ouvindo tudo. Não, isso não seria legal. E polícia? Bem na hora de decidir sua ida ao estrangeiro?
"???"
"Vai dar tudo certo Cris. Fica de boa que vou fazer o que tem que ser feito e me mandar. Te amo, maninha"
Cristine mandou beijos e corações para o irmão, torcendo para que tudo se resolvesse bem - ou, pelo menos da melhor maneira possível...
Daniel deixou a velha mala pronta, bem ao lado do sofá. Selecionou as suas melhores roupas, que não eram muitas, e socou tudo para dentro dela. Sentou-se em frente ao computador, e passou a copiar suas pastas de músicas para o seu HD externo. Salvou também seus games favoritos. Quando o relógio apontou cinco horas, Daniel sentou-se ao sofá e aguardou que a porta se abrisse. Era questão de minutos para que seu pai apontasse ali, por ela. Mentalmente, Daniel pensava no que dizer àquele homem: se apenas comunicava a sua saída do apê, ou se, olharia para a cara inchada da bebida de seu pai, para lhe dizer que sabia de tudo, e que iria ficar ao lado de sua irmã para sempre. Para ambas as hipóteses, Daniel não conseguia ver um desfecho amigável.
"Velho nojento... Como ele pôde fazer isso à Cris?" pensava Daniel que, talvez só agora entendesse o porquê de sua irmã ter se envolvido com o submundo da prostituição. O que mais será que Cristine não teria aguentado calada, por toda sua infância e adolescência? Aquilo era simplesmente repugnante para Daniel. Até poucos dias atrás, Daniel sentia apenas pena de seu pai, e um certo remorso após cada briga entre eles - afinal, era através dele que Daniel comia, fumava e dormia embaixo de um teto. Um consequente distanciamento, somado a um fim na solidão, parecia mesmo ser a opção mais apropriada para o seu pai daquele momento em diante.
Cinco e vinte, as chaves giraram na fechadura. Como sempre, junto da melancólica figura de seu pai, a tradicional sacola com alguma bebida dentro. Em sua testa um pequeno galo com um roxo, e no rosto a expressão de surpresa:
- Daniel!
Lentamente, o homem deu às costas ao filho e trancou a porta. Caminhou até a bancada que dividia a sala-quarto da cozinha, e exclamou:
- O bom filho à casa torna!
Daniel riu sem graça. Enquanto seu pai tirava uma garrafa de Smirnoff da sacola, ele avistou a velha mala marrom do filho, ali prontinha. Emendou, como quem não desse bola para o fato:
- E aí Daniel, parou na casa do Nico esses dias? - a essa altura, a vodca já enchia meio copo grande, enquanto pedras de gelo ali dentro eram introduzidas.
- Não - disse Daniel secamente, completando: - Fiquei no apartamento da Cris, minha irmã.
- Hum... Que bom para você, então, né?
Daniel via o olhar de cinismo em seu pai, que agora havia completado o copo com um resto de Sprite, totalmente sem gás. O barulho das pedras de gelo sendo mexidas pelos dedos era o som que se ouvia naquele frio, sujo e deprimente apartamento. Daniel contraiu o corpo quando viu o pai vindo em sua direção:
-Posso sentar aqui ao seu lado, Daniel?
- Claro - respondeu prontamente Daniel, se espremendo junto ao braço do sofá, bem do lado de sua bagagem.
Devido aos tapas, socos e chutes que seu pai já havia dado nele ao longo de anos, Daniel já não tinha medo nenhum de ser agredido. O tremor sentido em seu corpo era que ele mesmo tinha ganas de bater no próprio pai.
- E como ela está? - disparou o velho.
- Vivendo... - Daniel suspirou forte, sem olhar para a cara do pai, que bebia e tinha a sua perna encostada na do filho. - ...além de que conversamos um monte esses três dias... daí decidimos que eu vou passar um tempo com ela, até me arrumar na vida. Aqui, com o senhor, infelizmente não dá mais.
- Muito bem, Daniel. Isso foi uma decisão sua e daquela mal-agradecida, é? E me diga, Daniel, o que ela faz da vida? Afinal, a Cristine deve ganhar bem, hein?
- Não perguntei quanto ela ganha, e não quero saber. Só sei que ela tá me ajudando, e vou estudar no estrangeiro um tempo, o que também vai ser bom pra mim. Será que o senhor entende?
- Claro que entendo. Vai, vai mesmo pro exterior, meu filho... com essa revolução que tá se armando aqui... -antes de concluir sua frase, o velho virou um gole imenso do copo, deixando babar um pouco da bebida no queixo e na barriga - ... vai lá fora limpar privada de americano, já que aqui você não é homem pra isso, né?
Daniel só suspirou e ficou olhando a imagem dele e do pai refletida na velha TV de tubo desligada, que ficava bem à frente deles.
- Eu pretendo passar aqui uma outra hora pai, porque, sei lá...
- Passar aqui? Você?!?
Daniel baixou a cabeça e pediu paciência aos céus. Seu pai andou até a velha bancada para preparar o segundo copão. Arrematou:
- Pois eu duvido muito que o senhor venha aqui me visitar. Você vai no Nico, mas não vem aqui. Jogo quanto você quiser!
- Tá pai, tá bom...
- O que você vai fazer na casa dum bêbado? Ainda mais com aquela puta te colocando ideia ruim na cabeça. Ela te contou, por um acaso Daniel...
- Pára, tô avisando, porra...
- ... hein Daniel, a Cristine te contou como conseguiu esse dinheiro pra tua tal sonhada viagem, contou?
Daniel levantou-se do sofá, e foi já pegando a velha malha com uma das mãos. A essa altura, não queria mais ficar por ali.
- Pois eu te digo como, moleque: dando o cu e chupando pau na rua! - e começou a rir, forçosamente, como se houvesse contado uma piada sem graça. Daniel não se aguentou mais:
- E você? Alguma vez se perguntou o porquê dela fazer isso, pai? Será que você não tem culpa nenhuma nisso? Hein, me conta a verdade, se você é tão macho quanto diz! - Nessa hora, o velho já mostrava os cacoetes de que iria partir para a ignorância mais uma vez. Mas antes, Daniel completou o que queria dizer:
- Seu velho bêbado, tarado filho duma puta!!!
Nisso, o homem corpulento veio na direção de Daniel, já desferindo um tapão violento com as costas da mão na cara do filho. Mesmo esquivando-se um pouco, o tapa ainda pegou na cabeça de Daniel, que agilmente saltou para o outro lado da sala, mantendo uma pequena distância de seu furioso pai - que, começou a tirar a cinta de sua calça, nervosamente. Daniel, num segundo de autodefesa, pegou a garrafa de Smirnoff na mão. Seu pai, já de cinto na mão, berrou:
- LARGA JÁ A GARRAFA!!
- Larga o cinto então, porra!
- Eu disse LARGA MOLEQUE!!!
Na fração de segundos em que o homem deu um passo em direção ao filho, Daniel quebrou a garrafa contra a bancada de fórmica, restando apenas a metade do gargalo em sua mão, fazendo o líquido todo se esvair pelo chão da sala e da cozinha.
- NÃÃÃÃÃOOOOOO!!!!!
Seguido ao berro de desespero por ver sua bebida se acabar, o pai de Daniel largou a cinta no chão para pôr as duas mãos na cabeça. Já em seguida, como um touro bravo e acuado, voou na direção de Daniel.
Daniel foi andando para trás até bater suas costas na parede; já seu pai, como um trem desgovernado e com sangue nos olhos, se chocou violentamente contra o filho encolhido na parede.
Mas Daniel tinha, firme em seu punho, uma garrafa em cacos.
Quando percebeu que seu pai dava passos para trás, Daniel abriu os olhos e viu uma cena que jamais sairia de sua mente:
A do pai, cambaleante, com um jato de sangue jorrando de seu pescoço. Trôpego, seu pai caiu em meio à sala, já tremendo-se todo em convulsão.
Aí Daniel viu, ainda em sua própria mão, a metade da garrafa forrada com o sangue de seu próprio pai, e viu gotas de sangue em sua mão, e roupa. Desesperado, vendo o homem estatelado sobre sua própria, e imensa poça de sangue, Daniel largou no chão a garrafa e correu ao quarto de seu pai, se atirando de bruço sobre a cama para cair em prantos.
Daniel chorou copiosamente por mais de quinze minutos, só imaginado que alguém chegaria ali, quem sabe a própria polícia. Sem conseguir voltar para a sala-quarto, a mesma que Daniel dormia havia anos, ele mandou uma mensagem, tremulante, para Cristine:
"Mana, vem cá urgente. Por favor, não avisa ninguém e vem o quanto antes aqui. Você não vai acreditar na merda gigante que aconteceu"

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