O Vazio

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O fim-se-semana que antecedeu à entrevista de Cristine no consulado americano foi, para algumas pessoas, diferente de outros sábados, diferente de outros domingos comuns. É lógico que os novos acontecimentos de caráter nacional afetavam a praticamente todo e qualquer cidadão que estivesse envolvido em um contexto de Brasil. Contudo, para alguns desses cidadãos, o fim-de-semana havia transcorrido sob a forma de uma reflexão mais profunda, mais meditativa. Como dias que serviram para suplantar algum vazio, alguma lacuna que havia de ser preenchida na vida dessas pessoas.

Pessoas essas, tais quais Cristine.

Cristine sofria por dois flagelos distintos: um que a perturbava há anos, outro que a atormentava há apenas poucos dias. Para o tormento mais antigo, Cristine tinha agora, além de uma aliado, alguém para suprir a falta que uma família vinha fazendo na vida dela: Daniel. O seu único irmão, que agora passava horas ali, em sua companhia. Um jovem adulto, com quem Cristine podia conversar abertamente sobre uma infinidade de coisas; alguém com quem recordar suas brincadeiras de criança, ou de quando sua mãe ainda vivia; das traquinagens que todo irmão e irmã aprontam alguma vez na vida. A velha camaradagem, o próprio amor que, por motivos sórdidos e até mesmo doentios, os deixara longe pelos últimos sete, talvez oito anos de suas vidas. Sobre o temor mais recente de Cristine, um medo generalizado não a deixava abrir sua boca, não até o ponto de ela se sentir segura, em um lugar que a ela lhe transmitisse segurança. Esse lugar não era seu apartamento, nem seu trabalho e tampouco seu país. Esse alívio dependia de segunda-feira, que já estava logo ali, quase acontecendo em sua vida.

De Daniel podia-se dizer que a recente companhia da irmã lhe dera um ânimo completamente novo, uma nova esperança, algo que ele nunca obtivera durante a convivência junto de seu alcoólatra, e agora também pervertido, imoral pai. A sua antiga "mana" estava ali, como Daniel a tinha registrado em sua memória: um pessoa dócil, bonita, divertida, com quem os papos fluíam, com quem as coisas poderiam acontecer de verdade. Com um namorado americano esperando-a de portas abertas. Daniel via na irmã um brilho em seu olhar ao falar de Jeff, como também notava a frustração latente da irmã ao referir-se ao seu trabalho. Mas, naquele fim-de-semana de irmãos reunidos, ela não queria falar sobre isso. Sua única ligação com o seu local de trabalho foi a de ir buscar o seu carro, que lá havia ficado desde a última quinta. Se tudo desse certo, ela não trabalharia mais para aquela casa, nem para qualquer uma outra do mesmo gênero - nunca mais em sua vida.

A alguns milhares de quilômetros dali, Jeff vivia uma outra realidade bem diferente da dos irmãos brasileiros, realidade essa que o envolvia em um encontro ciclístico que movimentava o sul da Califórnia naquela época do ano. Tanto que o americano apenas conseguira trocar algumas palavras com sua namorada virtual via Whatsapp. E nessas poucas linhas digitadas, Jeff colocava uma nova ideia sobre a mesa: a de o irmão de Cristine tentar a sorte na vizinha Tijuana, cidade na fronteira com San Diego - mais precisamente, no México. Uma ideia que não passou incólume por Cristine e Daniel, haja vista que, para ela uma visita ao irmão seria algo normal de acontecer neste caso. Já ele, dependeria de apenas um pouco de sorte e paciência, para obter um emprego que o fizesse entrar legalmente nos EUA quando bem entendesse. Uma possibilidade viável até mesmo de acontecer através do próprio Jeff, se este quiçá conseguisse um trabalho para o irmão de sua então namorada brasileira.

Não muito distante do apartamento de Cristine, Susana preenchia o seu vazio passando momentos ao lado de Jorge. O domingo no cinema marcara o segundo encontro, a segunda vez que os dois ficavam juntos. O clima de romance estava definitivamente no ar. Desde o primeiro minuto lado a lado, até Jorge deixar Susana em casa tarde da noite, ambos circularam de mãos dadas, e felizes. Com beijos e carinhos, pareciam por vezes namorados de longa data aos olhos alheios. Porém, ambos sabiam que aquele tempo juntos era também um tipo de teste, em que Jorge deveria ser forte o bastante para aguardar um "sim" de Susana para o tão desejado momento do "fazer amor", de um estar dentro do outro, e sem receio algum de que alguma das partes porventura viesse a se machucar. Sem pressão, ao natural.

Susana pouquíssimas vezes lembrara de Roberto naquele fim-de-semana. E menos ainda dos atentados, ou das notícias repetidas acerca disso. O seu vazio era preenchido por esse médico, esse carioca radicado ali na mesma cidade da dela, homem esse que demostrava ter um espírito jovem, para frente, e que impulsionava Susana a tentar o novo, a quem sabe dar uma nova chance ao amor. O sentimento era mais do que bom, era dos melhores. Havia um feeling que à remetia aos seus primeiros encontros, àquele friozinho na barriga que antecedia cada momento junto de um novo homem. Assim sentia-se Susana, com uma leveza não observada nos últimos quatros meses em que passara sozinha, mascarando um fim de romance inexplicável, ilógico, frustrante.

E nessa mesma cidade, passando os dias dentro de um maquiado quartel-general entre outros membros do EEPR, estava Roberto, o agora PC. Ele e seu hematoma, do tamanho de uma laranja, bem do lado direito do peito. "Por sorte" lhe diziam os médicos plantonistas "o colete segurou o projétil, o que salvou sua vida". O que era a mais pura verdade. Nenhum órgão interno havia sofrido qualquer lesão, era o que mostrava tanto o raio-x, quanto a ressonância a que PC se submetera. Apenas algum remédio para a dor, e o "nosso homem de campo" poderia voltar às atividades normais do grupo. O fim-de-semana também serviu para que PC ficasse de molho, para então na próxima segunda já voltar com tudo para o campo - o que, ainda assim, não o excluía de participar, por exemplo, das reuniões com o time de analistas. Mesmo com as dores em seu peito, o que PC escutava era "bola pra frente, pois precisamos de você", palavras essas que vinham da boca do próprio líder Z, como forma de motivar um de seus melhores atiradores na execução das missões às quais o EEPR se prestava.

Mas, daquela madrugada em diante PC estava mais reflexivo do que nunca, pelo menos desde que entrara dentro do QG. Afinal, a bala calibre 12 era conhecida pelo tamanho do estrago que causava e, era fato que a sorte estivera do seu lado naquela hora. Poderia ter sido a sua cabeça a ir pelos ares - ou um braço, ou uma perna, o que fatalmente culminaria em sua consequente morte. Na melhor das hipóteses, mais um novo aleijado - o que o tornaria inútil para o esquadrão. Mas, diferentemente de outras pessoas daquela mesma cidade que tiveram um fim-de-semana inteiro para, à sua maneira, preencher algum vazio dentro de suas vidas, PC não conseguia para si o mesmo. Via a imagem de Susana até em meio às reuniões táticas em que participava. A via, e lembrava-se de como tudo era antes de o grupo começar: a sua vida com uma mulher, mais o sexo, o companheirismo e o respeito entre os dois. E PC tentava não pensar naquilo que a tela de seu laptop lhe mostrava. Ele não queria nem imaginar quão violenta poderia ser sua reação ao ver a sua Susana, nos braços de um outro alguém.

Não, definitivamente não havia o que remediasse aquele sentimento de vazio por dentro de Roberto... por dentro de PC.

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