O Reencontro

683 107 62
                                    

Daniel sentou-se num banco bem de frente ao prédio da irmã. O porteiro já havia o prevenido que "aquela moça bonita" sempre chegava ao amanhecer. Preparou-se para uma longa espera por ali, torcendo para que algum morador ou um transeunte qualquer passasse por ali fumando. Seria o único jeito de Daniel matar sua ansiedade e fumar um cigarro. Ainda agitado pelo acontecido há poucas horas atrás, Daniel não conseguia diminuir a sensação de desprezo por seu pai. Nem o corte, nem o sangue escorrendo pela testa de seu velho faziam Daniel arrepender-se do que tinha feito. Sabia ele que, se ficasse por lá, seu pai não sossegaria enquanto não enchesse o filho de pancada.
Um táxi parou bem em frente ao banco no qual Daniel sentava. Ao abrir da porta, Daniel ouviu o pisar do salto, e no reflexo, virou seu rosto em direção à Cristine.
- Dani! - disse ela, surpresa.
- Cris! - Daniel levantou-se para ir de encontro à irmã e abraça-la. Mas Cristine abraçou rapidamente o irmão, e, olhando para os dois lados, disse:
- Vamos subir Dani. Não é seguro ficar aqui, vamos pro meu apê.
- Meu, você tá branca, mana. Parece que viu fantasma...
- Acho que vi mesmo Dani...
----------------------------------------------------
Já dentro do confortável apartamento, Daniel se esticou no sofá chaise da sala enquanto Cristine tomava uma ducha e tirava sua "roupa de trabalho". Daniel olhava através da janela envidraçada a bela vista iluminada da cidade, e alegrava-se pelo fato de sua irmã já estar por ali para recebê-lo. Tentando não julgar o que a irmã fazia para viver, Daniel pensava que podia muito bem morar ali, e não naquele cafofo fedorento junto de seu pai.
- Nossa mano, não te esperava aqui hoje. Você deu sorte, eu normalmente não estou aqui essa hora - disse Cristine, ao mesmo tempo em que passava uma toalha em seu cabelo úmido. - Mas que bom que deu tudo certo, né?
- Sim...
- Você tava há muito tempo ali embaixo, Dani?
- Acho que uma hora, no máximo.
- O que houve? Foi o pai?
- Hum... Adivinha, né.
- O que ele te fez, Dani? Te bateu?
- Tentou, mas não conseguiu. Quer dizer, me defendi como deu na hora, mas se dependesse dele, eu estaria todo quebrado agora...
Daniel contou o acontecido, e também o que vinha acontecendo nos últimos tempos. A irmã ouvia a tudo atenta, até porque, estando focada no irmão, Cristine tentava apagar de sua mente o terrível encontro que tivera há pouco. Daniel via um semblante de preocupação na cara da irmã, sem saber se por causa de sua situação com o pai, ou por algo qualquer que houvesse acontecido no trabalho dela - algo que ele nunca iria perguntar à irmã, receoso de ouvir o que não queria.
Por fim, Daniel contou à irmã seus planos de ir embora para o estrangeiro; Cristine então revelou à Daniel estar apaixonada por Jeff, e que também queria, o quanto antes, deixar o país.
- Na próxima semana é a minha entrevista, Dani. Eu saio da embaixada já com o visto na mão; se eu quiser, posso embarcar, sei lá, semana que vem já, se me der na telha.
- No meu caso, mana, a moça da agência me disse que Canadá está girando em torno de dois meses para sair o visto... Demoradinho, né?
- E pros EUA, Dani? Você não pensa em estudar lá, quem sabe?
- Qualquer país pra mim tá bom, Cris. Peguei o orçamento do Canadá só porque estava mais em conta...
- Falando nisso, você tem algum dinheiro guardado?
Nessa hora, Daniel corou. Queria dizer logo à irmã que não tinha um puta, e que tinha nela sua única esperança. Aí baixou a cabeça, sem palavras.
- Dani, olha aqui. - Cristine ajoelhou-se à frente do irmão, passando a mão em seu cabelo.
- Maninho, o que eu puder fazer pra te ajudar, pode ter certeza que farei. Preciso só fazer a minha contabilidade, mas tenho dinheiro sim e acho que posso te pagar... Se você aceitar, é claro...
- É claro que eu quero sua ajuda... - Daniel abraçou a irmã com força e, tomado de emoção, sentiu uma lágrima caindo de seu rosto.
- Obrigado Cris, obrigado... Acho que só agora entendo o porquê de você ter saído de casa... É muito difícil mesmo de conviver com o nosso pai, fala sério...
Cristine beijou a testa do irmão, levantando-se. Pegou de dentro de sua bolsa um maço de cigarros mentolados, e ofereceu um a Daniel. Sua mão estava trêmula.
- Você tá fumando ainda, Dani?
- Sim. Já tava azul por um. - Daniel já tirou um isqueiro do bolso e acendeu na hora o cigarro que ganhou da irmã. Cristine ficou em pé, e seu rosto mostrava em sua feição que ela tinha algo a contar. Daniel, sentindo que um peso havia caído de seus ombros, tomou coragem e perguntou à irmã:
- Mana, aconteceu algo estranho...? Quer se abrir, pode se abrir comigo. Já tô com 21, deixei de ser criança há tempo. Se for referente ao que tu faz... Saiba que não te julgo. Já julguei, hoje não julgo mais... Quem sou eu pra falar alguma coisa?
- É que não é fácil. Mas vou falar, sim - disse ela, ainda em pé, dando uma longa tragada em seu cigarro.
- ... É sobre algum cliente, alguém que te machucou...
- Sim, é sobre alguém que me machucou, e muito. É sobre o nosso pai.
- Eu não lembro bem mana, eu era moleque, mas foi alguma porrada que ele te deu, logo que a mãe faleceu? Pelo menos, é o que sempre desconfiei, mesmo o pai negando tudo...
- Não, ele nunca me bateu pra valer.
Daniel fez uma cara de interrogação. Cristine pegou mais um cigarro do maço para si, ofereceu outro a Dani (que pegou-o na hora) e sentou-se no sofá de frente para o irmão. Suspirou fundo, e com o olhar profundo, começou a contar toda a verdade a Daniel:
- Nosso pai, Dani, é uma pessoa extremamente doente na minha opinião. Por isso saí de casa logo que perdemos a mamãe. Quando criança eu achava que aquilo era uma coisa normal, que ele me pegava no colo, ou me segurava daquela forma porque ELE ERA ASSIM, e pronto. Mas quando a mãe estava já no hospital, num dia de verão, eu tinha voltado do colégio e decidi tirar um cochilo em meu quarto. Naquela época, o pai tinha ganho férias adiantadas, até para ter mais tempo de cuidar da mãe, e de você, Dani...
- Sim, sim... - Daniel ansioso, roía as unhas, querendo que a irmã contasse tudo duma vez.
- ... e eu tava com a saia de verão do uniforme, e o ventilador de teto ligado no máximo sobre mim. Eu ouvi o barulho de passos, e decidi disfarçar que estava dormindo. É claro que era o pai, não podia ser mais ninguém aquela hora, uma que você estava na escola durante à tarde, Dani. Aí ouvi um barulho de um fecho. Depois um som que se repetia, e um gemido bem baixo, mas um gemido constante. Fiquei ali, imóvel, querendo não pensar no que podia ser. Mas quando o barulho cessou, abri de relance meus olhos... E vi nosso pai de calças baixas, com o pênis pra fora, ejaculando, tipo em transe ao olhar para minhas pernas e bunda...
Daniel tapou o boca com a mão, fazendo cara de nojo.
- ... depois disso eu comecei a evitá-lo o máximo que pude, Dani. Depois do funeral da mãe, ele vinha me abraçar, sempre tentava passar a mão em mim, mas eu já sabia que ali, no mesmo teto que ele, eu nunca mais iria morar...
- Deus pai... - disse Daniel, atônito.
- Aí um dia ele insistiu e insistiu que eu dissesse à ele porque estava brava, mas eu não conseguia falar. Aí ele fez chantagem, dizendo que sem a mamãe lá, eu tinha que ajudá-lo, ajudar a te cuidar também Dani...
- Canalha...
- ...e aí, após muita insistência, deixei ele me abraçar. Mesmo com nojo, ficamos abraçados por cerca de um minuto, mais ou menos. Quando forcei o corpo para sair de perto dele, ele, com toda brutalidade, me agarrou com toda a força, me beijando na boca.
- Ah Deus...
- Eu tentei escapar, eu cerrei meus lábios, e ele com aquela boca com bafo de cachaça, querendo alcançar a minha língua...
- Deu, chega Cris. Eu não preciso mais ouvir nada.
Daniel se levantou e foi de encontro à irmã. Abraçados, choraram juntos por uns cinco minutos. Aí Cristine limpou o choro e foi preparar o quarto de hóspedes para um perplexo irmão se acomodar e ficar por ali, pelo tempo que bem entendesse...

FugaOnde histórias criam vida. Descubra agora