Cristine respirou fundo. Enquanto trocava de roupa, inspirava e expirava calmamente, buscando não ficar tensa. Mas, o momento era difícil. Pôs suas coisas dentro da bolsa, e respondeu a Daniel no celular:
"Fica tranquilo que estou saindo daqui agora, de carro. Bjo"
A mensagem do irmão trazia à Cristine pensamentos dos mais variados. Além disso, Jeff não havia lhe respondido nada ainda desde o momento em que Cristine saíra da embaixada americana - o que tornava aquele momento mais preocupante para ela.
Já próxima ao pequeno prédio de condomínios, Cristine achou uma vaga e estacionou na rua. De olho no celular, viu uma mensagem.
- Que droga... Me deixem em paz, seus...
Era um dos proprietários do nightclub onde Cristine trabalhava, insistindo para que ela fosse até lá falar com ele; dizia ele ter uma "proposta irrecusável" para que ela voltasse. Cristine apenas o ignorou, botando o celular dentro de sua bolsa para adentrar no pequeno pombal. Com óculos escuros e vestida casualmente, Cristine pegou novamente o aparelho da bolsa para ligar para Daniel e perguntar o número do apartamento ao irmão. Deu mais alguns passos, passando por crianças que corriam por entre os corredores, para finalmente bater à porta. De dentro, Daniel observou o olho mágico e rapidamente abriu uma fresta da porta, dizendo em voz baixa:
- Entra, mana. Só fala baixo, por favor... - Cristine consentiu com a cabeça, e ao passar pelo vão da porta, seus olhos se arregalaram de espanto: à sua frente, bem no chão da sala, uma coberta velha e encardida de sangue, tapava um corpo grande, do qual apenas um braço ficara destapado. Havia sangue por debaixo também, formando uma pequena poça. Daniel rapidamente puxou a irmã pelo braço para o quarto, onde entrou e fechou a porta. Com lágrimas nos olhos, finalmente falou:
- Viu o que deu? Viu o tamanho da bosta que eu fiz, mana?? Mas, mas...
- Calma Dani, tenta ficar calmo... - Cristine respirou fundo pela enésima vez - ...como a coisa chegou a esse ponto? Vem, senta aqui na cama comigo e me conta rapidinho, eu preciso saber...
Daniel, tentando segurar o choro, dizia à Cristine como a briga havia começado. Cristine fumava ouvindo o irmão, que, ainda tremia a mão ao segurar o seu cigarro.
- ... e assim, ele veio com tudo pra cima de mim, e eu apenas me defendi... - mais uma vez Daniel não segurou o pranto. Cristine abraçou o irmão firmemente, e segurou o sua vontade de chorar. Ela sabia que tinha de ser forte e decisiva naquele momento. Pensou, enquanto acudia o irmão em seus braços, e viu que aquele era um momento para medidas extremas:
- Dani, olha aqui...
- O que foi?
- Me diz uma coisa; por um acaso, você tirou passaporte alguma vez?
- Quando eu trabalhava no posto eu fui à polícia federal...
- E?
- ... e aí eu tirei meu passaporte. Desde aquela época eu queria ir embora dessa merda de país!
- Ufa! Bom, então podemos fazer o seguinte: você arruma a sua mala...
- Já tá pronta, mana...
- ...melhor ainda! Pega sua mala, seu passaporte e vamos até meu apartamento. Lá poderemos comprar a próxima passagem que tiver para o exterior. Tipo, pra hoje já, se for o caso. E vamos nos mandar daqui!
- Mas, mas... E ele ali?
- Bem... Dani, tinha alguém que vinha aqui visita-lo? Tipo uma mulher, algum amigo?
- Não. Nunca vi...
- E os vizinhos?
- Não, também não... O apartamento da porta ao lado tá sem alugar pra mais de mês já.
- Hum, ótimo... E o aluguel, as contas, estão todas pagas? Digo, alguém cobra ou traz as contas pra vocês até a porta?
- Sim, a dona Eleonora. Ela é a dona aqui, vive perambulando por aí pra encher o saco dos outros.
- Ela tem a chave então?
- Deve ter, sim...
- Bem... Vamos deixar o telefone fora do gancho. Não sei se o cheiro pode sair pra fora daqui... Eu digo... Se o corpo do pai... - Cristine suspirou fundo em meio à frase. Mesmo não tendo praticamente mais nenhum laço com seu pai há anos, aquela situação parecia lhe embrulhar o estômago. Concentrou-se e concluiu o seu pensamento :
- ... Enfim, acho que agora o relógio é o nosso maior inimigo. Junte tudo o que precisar Dani, e vamos embarcar pra fora do Brasil duma vez!
Daniel assentiu com a cabeça e foi buscar seu passaporte.
- Só acho que não vou ter nenhuma grana aqui...
- Fica tranquilo, Dani. Você tá
comigo. Vou te deixar um dinheiro que vai te sustentar os primeiros dias, até você dar um jeito lá fora...
- Mas... Eu vou pro México, é isso?
- Sim. É a escolha mais viável que temos. Vamos procurar o seu voo pra Tijuana, e o meu para San Diego. Cada um dum lado da fronteira. Estaremos pertinho um do outro mano... Se bobear mais perto do que aqui...
**********************************A saída do apartamento até o carro foi, na medida do possível, tranquila. Dona Eleonora conversava com um morador em meio ao pátio, mas Daniel baixou sua cabeça e passou sem olhar para ela. Carregando sua velha mala, chegou ao carro da irmã e pôs sua bagagem no porta-malas. Cristine dirigiu rumo ao seu apartamento, mas o trânsito parecia ainda selvagem naquele início de noite.
Na estação de rádio FM, um boletim urgente falava sobre o estado de saúde do Ministro da Fazenda, que havia sido alvo de um atentado no início da tarde; não só o governo, mas o país inteiro se via numa crise ainda não observada em sua história. Um grupo armado, do qual ainda não se sabia o nome, vinha fazendo um estrago por onde passava; políticos renunciavam de seus cargos e começavam a fugir do país, com medo de serem mortos. Não havia um consenso entre polícia e exército; ninguém sabia dizer onde o inimigo se encontrava, ninguém havia sido pego ou entregue às autoridades até então; até uma recompensa o governo dava por informações que levassem aos ditos terroristas - mas, até o momento, tudo parecia ser em vão, escancarando uma impotência total dos poderes...
Já de volta ao seu condomínio, Cristine e Daniel entraram em sites de passagens aéreas e pesquisaram pela próxima passagem disponível: Cristine conseguiu um voo para San Diego no início da madrugada, enquanto Daniel esperaria um pouquinho mais no aeroporto, pois seu voo seria na primeira hora da manhã seguinte. Paralelamente, Cristine tentava contatar Jeff via Skype ou WhatsApp - sem sucesso.
Cristine imaginava que algo havia acontecido com Jeff; lembrou-se que ele tinha comentado, mais de uma vez, que seu pai tinha uma doença rara que o impedia inclusive de trabalhar, e imaginou que algo de ruim pudesse ter acontecido à ele.
- E você vai até lá mesmo assim, mana? - indagou Daniel à irmã.
Cristine pensou um instante, para responder a Daniel:
- Vou fazer uma surpresa para ele. É só o que me resta, Dani...
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Fuga
Mystery / ThrillerO destino de quatro pessoas vai mudando drasticamente, ao mesmo tempo em que o país onde vivem sofre uma inédita onda de ataques terroristas.