Já era visível, pela expressão no rosto de Susana, que seu coração estava balançado novamente. Suas amigas, seus colegas de trabalho (até mesmo o proprietário da agência), todos já haviam notado nela um olhar diferente, ou percebido o jeito que Susana corria os olhos ao ler as mensagens em seu WhatsApp. Havia alguém, finalmente, ocupando a sua mente, acalentando seus desejos de mulher.
Ao término de mais uma sessão com Lauro, Susana deixou o consultório ainda mais confiante em relação à Jorge. Seu psicólogo sabia que um novo relacionamento só vinha a ajudá-la, e sua mensagem era clara: "siga o seu coração".
Já era por volta das 7 quando Susana estacionou seu carro na garagem de sua casa. Com o pensamento distraído entre a música pegajosa que ouvira há poucos minutos na rádio e Jorge, Susana passou as chaves na porta, já em seguida acionando o interruptor da sala. Ao apoiar a mão na parede para tirar os sapatos de salto do pé, a luz apagou-se; no mesmo segundo, uma mão tapou sua boca, ao mesmo tempo em que ela sentia um corpo colado bem atrás do seu:
- Não grita, Susana. Sou eu, o Beto - em voz baixa, Susana ouvia a voz de Roberto ao ouvido, sem atinar direito o que diabos era aquilo.
- Tá tudo bem... Vou acender a luz e te soltar... Só te peço que não grite, por favor, tá?
Susana assentiu com a cabeça, uma que a mão de Roberto seguia tapando sua boca.
- Estou tirando a mão, você pode ficar tranquila...
Susana virou-se na mesma hora e deu de cara com Roberto. Que vestia um macacão. Que parecia mais magro, talvez com o rosto mais pálido, um pouco mais branco do que de costume. Demorou alguns segundos até que ela formulasse a sua primeira frase:
- O que você tá fazendo aqui, Beto?! Assim, dentro da minha casa?? O que significa isso, meu Deus???Roberto levantou um dedo, como quem pedisse um minuto de silêncio. Dirigiu-se até o antigo som estéreo da sala, sintonizou numa música eletrônica que tocava e aumentou o volume do aparelho.
- Não tá muito alto isso? Roberto!
- Shhhhhh... - Roberto fez o sinal de silêncio com o dedo na boca, e foi até a cortina da sala onde deu uma espiada pela fresta da mesma. Aí aproximou-se de Susana, e disse:
- Vamos nos sentar um pouquinho aqui. Preciso falar contigo, apenas quero me certificar que ninguém ouça nossa conversa, OK Susana?
Susana concordou com a cabeça e sentou-se. Seu rosto expressava um misto de indignação e curiosidade ao mesmo tempo. Roberto sentou-se ao seu lado, e começou a falar próximo do ouvido de sua ex-mulher, o que na hora fez Roberto sentir e lembrar o perfume dela...
- O negócio é o seguinte Susana. Estou aqui porque vim buscar meu passaporte e uns dólares que mantive guardado aqui em casa. Precisava vir para cá de qualquer jeito, e cheguei não faz muito...
- Por que você entrou na casa sem me informar? E o que tá acontecendo, Roberto?!?
- Susana... vou te falar agora, brevemente, mas quero que me ouça, tudo bem? Sei que baguncei toda a sua vida, mas a questão é que...
Susana concordava com a cabeça, mas seu coração batia forte. Ela não esperava por aquilo, não daquele jeito que estava acontecendo.
- ... a questão é que sou um desertor. Me desliguei de onde estava, do grupo que eu estava fazendo parte. Tomei a decisão há alguns dias, quando isso me aconteceu...
Roberto desabotoou o macacão e mostrou o hematoma em seu peito, que tinha uma tonalidade que ia do roxo ao esverdeado em algumas partes.
- Ai, chega disso, me diz logo o que tá pegando, Beto! Desertor do quê? Eu não sei de nada do que você tá falando, o que é isso, droga??
- Calma, mantenha a calma, Susana. É só o que te peço agora. Meu coração tá como uma bomba-relógio, mas eu to tentando manter a calma... Vou te dizer, só me escuta e, depois eu vou poder te falar mais, mas por agora o que posso te dizer é que, esse tempo todo que saí da sua vida, eu me envolvi com um grupo armado, esse mesmo que está fazendo os atentados contra os políticos do Brasil. Entende??
Susana estava boquiaberta.
- Meu Deus... e então...?
- Sim, eu fiz parte do grupo e hoje, abandonei a missão em que estava e meu companheiro que estava comigo. Por isso, preciso agir, e rápido. Vem comigo até o quarto agora, por favor Susana...
- Não, o que você quer fazer?? Não vou, vá você! Eu, eu... você matou alguém Roberto? Olha pra mim, Roberto, você matou gente, MATOU ROBERTO?? Se você pensa que eu vou fazer qualquer coisa com você, saiba que estou em outra já, eu nem conseguiria...
Roberto segurou Susana pelo braço.
- Eu até quero, mas não vamos, não podemos fazer nada, Susana. Esses caras não vão me perdoar, eles vão querer meu couro. Já devem estar mandando alguém pra cá, agora...
- Deus pai...
- Sim, por isso, venha aqui comigo, quero te livrar de qualquer incômodo, vem...
Susana foi até a porta do quarto e viu uma mala sua, aberta na cama.
- Eu tomei a liberdade de colocar as primeiras coisas que vi ali. Veja se é isso mesmo Susana, e arruma uma mala bem básica. Pega o teu passaporte. Você vai comigo, agora.
Susana tremeu na base. O que era aquilo? De repente, a vida dela corria perigo também? Aquela situação momentânea a aterrorizava, a fazia ficar arrepiada, sentindo como se o mundo inteiro tivesse caído sobre sua cabeça.
- Ai, não... - Susana dava passos lentos até a cama. A sensação de impotência arrebatava qualquer ideia que ela pudesse ter. E Jorge? O que seria feito de Jorge?? Agachando-se em frente a mala, Susana, que sempre que possível segurava o choro, não aguentou e caiu em lágrimas. Roberto se aproximou na hora, e ao pé do ouvido disse à ela:
- Eu sei, eu sei que isso deve parecer horrível. Só vamos sair daqui, pois quero você viva. Vamos embarcar pros Estados Unidos, eu e você, e lá chegando, deixa a poeira baixar, e você volta pro Brasil se quiser... vou ter que entender se você não quiser mais nada comigo, eu não posso fazer nada a respeito disso. Só quero que você viva, Susana. E, se você ficar aqui, você corre sério risco... sei lá, eu te deixar aqui seria como se eu mesmo tivesse dado à você sua sentença de morte... E eu te quero viva, e bem, entende o que eu digo, Susana? Hum?
Susana limpava o rosto cheio de lágrimas. O choro cessou, mas o sentimento de impotência não. Até a morte não parecia ser a pior das coisas naquele momento...
Roberto foi à cozinha, e habilmente retirou um retângulo de azulejo do chão; dentro dele, seu passaporte e um punhado de notas de cem dólares, embaladas num plástico. Enquanto Susana melancolicamente acabava de arrumar sua mala, Roberto ainda perguntou:
- Não ficou nenhuma roupa minha aí?
- Eu doei tudo, há um mês atrás eu acho...
- Tudo bem. Compramos algo no aeroporto. - Roberto tinha sua pistola em riste, todo olhos e ouvidos com as janelas e portas de sua antiga residência.
- Pegou o passaporte, Susana?
Sem olhar pra cara de Roberto, Susana apenas levantou a mão e mostrou seu passaporte em punho. "Que coisa absurda" pensava ela. A tão sonhada viagem que os dois nunca chegaram a fazer para os Estados Unidos estava prestes a acontecer, dentro de algumas poucas horas talvez. Porém, sem brilho, sem glamour algum. Apenas uma fuga, vazia, irresponsável e perigosa, que colocava tudo por água abaixo: sua vida, sua rotina, seus objetivos. Tudo assim, sem mais, nem menos.
Antes de entrarem no carro, Roberto pediu que Susana saísse guiando ela mesma, sem rodeios, ao aeroporto. Roberto ficaria deitado no banco traseiro, tapado por um cobertor preto, com sua pistola pronta para o que quer que fosse.
Aquele trajeto até o aeroporto, algo tão rotineiro na vida de Susana - que tanto buscou e levou turistas para lá durante todos esses anos na agência - pareceu para ela, naquele momento, a viagem mais longa e tortuosa de toda a sua vida...
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Fuga
Mystery / ThrillerO destino de quatro pessoas vai mudando drasticamente, ao mesmo tempo em que o país onde vivem sofre uma inédita onda de ataques terroristas.