O: "E Agora?"

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Susana entrou no primeiro táxi e seguiu para o apartamento de Jorge. Ele lá a recebeu, aguardando-a com um café recém-passado e vestindo um roupão. Era começo da madrugada.

- Você deve pensar que sou louca...

- Por quê?

- Bem, ninguém espera uma ligação assim, eu acho...

- Susana, sente-se aqui e enquanto você experimenta o seu café, pode ir me contando calmamente o que está acontecendo. Serei todo ouvidos.

- Mas... você não tem que ir pra clínica cedo amanhã, Jorge?

- Não. Amanhã é minha manhã off. Podemos ficar acordados até a hora que acharmos justo. Tanto que preparei o café...

- Você é um amado mesmo, Jorge. Pois então, vou começar lá do início...

Susana então contou tudo para Jorge. Tudo o que ela sempre havia evitado dizer - sobre seu ex, sobre os motivos da separação, da sua desconfiança "tola" até a abrupta confirmação obtida naquele mesmo dia. Susana não deixou nada para trás, nem um detalhe sequer.

Jorge poucas vezes a interrompeu para perguntar algo. Sua feição demostrava surpresa e por vezes, preocupação - não por si próprio, e sim por Susana. A decisão tomada por ela, de estar ali à sua frente, deixava claro a Jorge algo que ele queria, e muito: a certeza de que ela o amava. E mesmo com tudo o que ela vinha passando, Jorge não era homem de fugir da raia. Ele faria tudo, dentro do seu alcance, para ajudar Susana.

Após a revelação, ambos conversaram por mais um tempo, e Susana aceitou a sugestão de Jorge em pegar dez dias de atestado do trabalho. Até ver onde a coisa iria. Se fosse preciso, ele lhe daria mais dias, simples assim. E ela ficaria morando provisoriamente com ele ali, em seu confortável apartamento. Jorge também iria ligar para a garagem onde havia ficado o carro de Susana, e pediria que devolvessem o automóvel, talvez na própria casa de Susana. Qualquer custo seria pago online, e Jorge perguntaria para os responsáveis se alguém já havia ido atrás do carro, ou até tentado retirá-lo dali.

Susana tentou ao máximo deixar Jorge fora de tudo aquilo, porém sua calorosa recepção à ela não poderia te-la deixado mais feliz. Pensando positivamente, Jorge tinha certeza que tudo daria certo, afinal as coisas não ficariam pra sempre daquele jeito. Ou o Brasil mudaria logo com tudo o que vinha acontecendo, ou esse grupo uma hora seria desmascarado. Assim era o que a história apontava, nenhum dos dois poderia mudar algo maior que vinha sendo escrito. E Jorge rechaçou a possibilidade de Susana ser uma provável próxima vítima, especialmente ali ao seu lado, longe de sua casa; se o grupo queria pegar o tal Roberto, eles teriam de o fazer no exterior, e ponto final.

Após a conversa, enfim Susana deitou-se com Jorge e entregou-se a ele - de corpo e alma. Foi a primeira vez que eles fizeram amor e, da forma mais natural que se possa imaginar. Era uma coisa mútua - ambos queriam muito aquilo, ambos aguardaram ansiosos por esse instante nas últimas semanas. Um momento único de prazer, que para sempre seria lembrado. Quando Jorge e Susana atingiram juntos o orgasmo, da fresta aberta da cortina via-se o sol nascendo no horizonte, clareando majestosamente o quarto, outrora escuro - marcando assim, a ternura do momento e o início de uma nova vida a dois.

Nessa mesma madrugada, nos limites das mesma cidade, um jovem adulto vivia a etapa mais crucial da sua vida. Ainda impactado pelo brutal acontecimento há menos de 24 horas, Daniel ia trabalhando o seu psicológico da melhor maneira que podia. Como uma forma de se animar, e também de buscar confiança para sua nova etapa que viria a seguir, Daniel botou em seu Ipod a sua coletânea favorita dos Rolling Stones. Por algum motivo, a música "daqueles coroas", como a eles Daniel chamava, o fazia se encher de entusiasmo. E era isso que ele precisava naquela poucas horas que antecediam o seu voo.

Envolto nessa energia, é que Daniel casualmente passou os olhos na tela de uma TV localizada dentro de um café, que mostrava "Boletim Urgente". Tirando o fone que tocava Tumbling Dice, Daniel ouviu o âncora do jornal falando:

"Foi revelado agora, na madrugada de hoje, o nome do grupo terrorista que vem cometendo os ataques aos políticos e seus partidos: o grupo intitula-se EEPR, sigla para 'Exército de Extermínio Pró Revolução'. O grupo deixou um vídeo, onde nenhuma pessoa aparece, e sim uma carta-manifesto, onde, entre outros, o grupo exige uma série de mudanças imediatas para o país, dentre as quais:

- a eliminação de todos os partidos políticos existentes no Brasil e a criação de apenas dois partidos únicos, repetindo o caso de muitos dos países desenvolvidos, que seguem esse mesmo modelo;

- a elaboração, em caráter imediato, de uma nova constituição federal, mais enxuta e que exclua uma série de benefícios e regalias destinados a cargos políticos;

- uma reforma, também em caráter de urgência, do sistema judiciário brasileiro, no intuito de diminuir em até dez vezes o tempo de um processo criminal, do início ao término do mesmo;

- a reforma fiscal e tributária

O grupo reiterou um cessar fogo de duas semanas, onde as mudanças solicitadas deverão ter seu processo não apenas iniciado, mas já em vias de aplicação; se, ao término de duas semanas o governo do Brasil não atender as solicitações do grupo, a promessa é de ataques maiores, nos quais até familiares dos políticos em questão poderão ser o alvo da vez.

Quanto ao ministro da fazenda, ele segue em observação na UTI do hospital..."

Daniel colocou o fone no ouvido novamente, para seguir rumo ao seu portão de embarque. Eram seus últimos minutos em solo brasileiro. Fazendo uma alusão ao país onde iria desembarcar dentro de algumas horas, Daniel decidiu por colocar Carlos Santana em seu Ipod. Ele sabia que, apesar de toda a ajuda que vinha recebendo de sua irmã Cristine, Daniel agora tinha de ser o senhor do seu destino; órfão que era, não poderia mais contar com toda a sorte de ajuda para sempre, mas sim, preparar o seu terreno e ser alguém na vida - fosse no México, nos EUA ou em qualquer lugar do mundo. Daniel precisava agir como homem, batalhando para ele o melhor e retribuindo toda a ajuda e o carinho que vinha recebendo de Cristine nesse momento de medidas extremas.

Já no portão de embarque, Daniel foi para a fila com os demais passageiros, e sentiu um arrepio ao ouvir Samba pa Ti. Aquela música era para Dani uma das mais bonitas que ele já havia escutado em toda a sua vida. Isso ficaria registrado para sempre em sua memória, como uma trilha sonora que permeava cada acontecimento de sua existência. Aquele momento não era diferente. Daniel aproveitou para pedir aos céus toda a proteção para ele e sua irmã, e pediu também, que se houvesse alguma justiça divina, que o perdoasse pelo acidente com seu pai. Pediu também que seu pai fosse perdoado pelos seus pecados, especialmente os que cometera em vida com sua irmã.

Ao botar os pés dentro do avião, Daniel começava uma nova vida. Tanto que segurou o que pode e não derramou nenhuma lágrima sequer, por mais que o solo da música tocasse seus sentimentos de maneira absurda. Calmamente ele tirou seu fone do ouvido e acomodou-se em seu assento, sentindo-se, pela primeira vez, o senhor do seu destino.

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