Prólogo - Estado de Libertação

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9 de setembro de 2004

Meus olhos custaram a se acostumar com a luminosidade repentina. Mesmo estando no interior de algum lugar fechado e escuro que não sabia exatamente qual, a pouca claridade que irrompia por entre as janelas sujas me causou uma leve e irritante dor de cabeça que latejava de forma sincronizada sobre meu olho esquerdo. As cores presentes nos pequenos fragmentos de luz que chegavam até mim se misturavam uns aos outros dançando ao som de uma canção silenciosa em torno de pontos brancos que se sobressaiam das demais cores.

Era como se a minha visão tivesse obtido a habilidade de ampliar tudo ao Cada fragmento de poeira presente no ar, cada grão de terra preso na parede, até mesmo as gotas microscópicas de água que me cercavam, de repente se formaram perante os meus olhos. Tudo havia se amplificado, me revelando um novo mundo ainda desconhecido.

Pisquei algumas vezes a fim de trazer minha visão de volta ao seu normal e quando finalmente consegui, percebi que os óculos que carregava em minha bolsa há tantos anos não seriam mais necessários.

Assim que me acostumei ao ambiente incomum onde me encontrava, percebi pela primeira vez as paredes sujas e extensas que se formaram ao meu redor. O teto era coberto em sua maioria por telhas compridas de alumínio que em algumas partes possuíam grandes buracos por onde se podia ver o céu nublado. As janelas estavam todas cobertas por uma grossa camada de sujeira e ao fundo uma grande porta de metal me indicou que aquele era um dos muitos armazéns abandonados que existiam naquela cidade.

O olfato veio seguido da visão. Um cheiro forte e ruim alcançou meu nariz. Assemelhava-se ao odor que exalava de um animal em estado de decomposição, e estava em algum lugar bem próximo a mim. Senti um enjoo revirar meu estomago, se associando à dor de cabeça que ainda insistia em me incomodar.

Após o olfato, veio o tato. O chão escorregadio e pegajoso cutucou minha pele e se enrolou em meus dedos, o que me causou uma sensação entranha e uma repulsa incontrolável. As palmas das minhas mãos estavam suadas assim como o meu rosto, e logo abaixo da minha orelha esquerda podia sentir, sem ao menos me incomodar em tocar, uma diferença na pele acompanhada de uma leve ardência, mas nada que me alarmasse. Não em meio a tudo aquilo.

Então veio a audição. Barulhos surgiram de todas as partes, amontoados e todos ao mesmo tempo, o que me fez levar as mãos à cabeça em uma tentativa inútil de controlar a dor que aumentara. Aos poucos os sons foram se diferenciando: animais, aves, passos pesados mais ao longe. Ainda mais distante conseguia ouvir risadas, vozes, carros, celulares tocando. E tão subitamente quanto apareceram os barulhos sumiram, dando lugar ao silêncio.

O paladar surgiu abruptamente, empurrando os outros sentidos para um canto escuro, ignorando-os e tomando seu lugar de destaque. Minha boca foi tomada por um gosto amargo e minha língua parecia haver se tornado uma lixa grossa. Pigarreei algumas vezes para afastar o incômodo, o que não serviu para afastar a queimação que ardia dentro do meu peito.

Apoiei as mãos no chão com o intuito de me levantar e me vi de pé mais rápido do que o normal. Olhei ao seu redor na escuridão e localizei minha bolsa caída em um canto perto da porta que dava para fora do armazém. Mesmo que ainda confusa, ordenei minhas pernas a andarem, porém elas correram, praticamente flutuaram fazendo o caminho até o meu breve destino muito mais rápido do que o que se julgaria normal.

- Mas que merda está acontecendo? - Minha voz ricocheteou pelos quatro cantos do ambiente vazio e voltou até os meus ouvidos, e eu não pude deixar de notar a diferença. As palavras que saíram dos meus lábios estavam mais suaves, charmosas e convidativas, como nunca antes estiveram.

Maldição de SangueOnde histórias criam vida. Descubra agora