01 - Fardo

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Quatorze anos depois

Alto Paraíso. Antes

A noite estava fria e tranquila. Lá de cima o céu parecia estar ainda mais estrelado do que se podia ver das ruas sujas, mal iluminadas e barulhentas lá embaixo. Mais ao norte as ondas se chocavam violentamente contra as rochas, trazendo até mim aquele maravilhoso cheiro de maresia que há tempos aprendi a apreciar.

Alto Paraíso era uma cidade com um nome que não lhe fazia jus e que havia me acolhido perfeitamente na época em que decidi voltar para o Brasil após anos vagando ao redor do mundo. Era uma vasta região que ia de encontro ao mar, beijava a orla de uma densa floresta e possuía um ar de metrópole que nunca dormia. A capital do mundo sobrenatural do qual agora eu fazia parte. Lá as pessoas eram cordiais e gentis, apesar de estarem sempre em movimento. Era o meu lugar no mundo.

Em contrapartida a essa aparente calmaria, uma outra grande característica de Alto Paraíso eram as mortes suspeitas e brutais que assolavam a cidade. Boa parte da população dos vampiros, lobisomens e bruxos viviam aqui, então era de se imaginar que coisas deste tipo acontecessem com frequência. Ninguém era tolo o suficiente para se meter nos assuntos mais tenebrosos por medo do misticismo e das lendas que cercavam a região, lendas essas que mal sabiam os humanos que eram reais.

Um grito abafado cortou a noite subitamente e atraiu a atenção da minha audição apurada, porém apenas mais um em meio a tantos. Me concentrei por alguns instantes e pude escutar uma mulher amedrontada pedindo por socorro não muito longe de onde eu estava.

Rompi por cima dos telhados tão rapidamente que olhos humanos não me notariam se passasse eu por eles. Fui parar mais ao sul de onde estava, me equilibrando em um andaime enferrujado próximo a um prédio antigo e tirando vantagem da penumbra para me esconder. Logo abaixo podia ver um homem alto – usando uma enorme jaqueta de couro esverdeada e uma touca preta que cobria todo seu rosto – segurando ameaçadoramente uma arma contra o rosto de uma mulher de cabelos loiros compridos enquanto vasculhava sua bolsa com aparente impaciência.

- Se tu soltar um pio eu juro que estouro seus miolos aqui mesmo me ouvindo? - O homem pressionou ainda mais o cano da arma contra a bochecha da mulher, que fechou os olhos com medo do que poderia lhe acontecer.

Seu casaco vermelho estava rasgado na altura dos ombros, um estrago provavelmente causado pelo mesmo homem que agora lhe ameaçava a vida. Seu coração batia muito aceleradamente e um tremor se espalhava por todo o seu corpo, o que me levou a crer que ela poderia ter um ataque cardíaco a qualquer instante.

Pulei em direção ao chão, sentindo o vento passar por entre as minhas roupas antes de aterrissar. Se soubesse que faria algo daquele tipo naquela noite não teria colocado aquela calça jeans desconfortável e muito menos uma camisa branca, elas eram ótimas para manchar de sangue.

Caminhei silenciosamente até o assaltante e sua vítima, que não pareceram notar minha presença. Parei logo atrás dele, pensando brevemente no que faria quando ele se virasse para mim.

- Há algum problema aqui? - Perguntei calmamente.

O homem se virou abruptamente. Com certeza não estava esperando por plateia.

- Sai já daqui e vá cuidar da sua vida, sua vadia! - esbravejou ele nervoso antes de se virar para ameaçar mais uma vez a mulher, que agora me pedia socorro silenciosamente.

- Eu até poderia, - Ele se virou novamente, dessa vez com a arma apontada em minha direção – mas, infelizmente, já faz algum tempo que não tenho uma.

Aproximei-me dele rapidamente parando a alguns passos do cano de sua arma. Ouvi o gatilho se armar e senti a bala penetrar o meu ombro esquerdo. A mulher que ainda assistia a tudo atônita soltou um grito agudo. O homem arregalou os olhos quando um sorriso cresceu em meus lábios.

Maldição de SangueOnde histórias criam vida. Descubra agora