Vazios

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[...] Sempre do jeito mais difícil, ela descobriu ser um vazio. Não era de conteúdo, de conhecimento. Não era sobre as músicas que ouvia ou os livros que devorava, na sua sede de palavras nunca antes lidas. Era sentimento mesmo. Ou, pode-se dizer que ela é a falta de conteúdo amoroso, daqueles filmes que passam na tv de tarde, enquanto ela dorme. Daqueles que atravessaram sua vida, de uma esquina a outra, ou sentaram no banco do ônibus, bem ao seu lado. Pode-se dizer que ela não possui experiência nessa coisa de começar a ver o sol nos olhos de alguém. Talvez uma chama, laranja e crepitante, que logo apaga.

Descobriu, de forma difícil, que a saudade não é o mesmo que querer de volta. E que só querer, é o mesmo que só enxergar aos domingos, ou em qualquer outro dia específico da semana. Não é o bastante, não sacia a alma. Não colore a vida. Descobriu que as letras perdem o sentido depois de um tempo, e então acabam adquirindo novos significados, que nem lembram mais alguém. As fotografias desbotam, ou mesmo são esquecidas dentro de alguma agenda, sem a data escrita no lado de trás. Sem nada que possa atribuir um sorriso tímido ao rosto. E como nada é perfeito, o mesmo acontece com as pessoas: mudam sorrisos, cortes de cabelo, personalidades. Esquecem datas, promessas e também outras pessoas. Abrem e fecham vazios, vão embora, voltam e pedem pra ficar quando a bem da verdade, é que querem sair pra longe, em avenidas sem muitos postes de iluminação. Acho que para não revelar os podres, e outros vazios como o da menina. E ela já não lembra desse tipo de pessoa. Não lembra de ninguém, porque ninguém faz falta. Na pior das hipóteses, apenas o rosto aparece como uma mancha, quando ela esbarra com alguém na rua ou no supermercado. Mas ela continua vazia, porque quando lhe perguntam como tudo está, ela vê que nada nunca muda: os dias passam e a mesmice incomoda os sonhos de menina que ela ainda tem. E tudo está ruim, meio cinza e sem graça. Ela se sente apagada. Quando lhe perguntam como tudo está, ela lembra do café frio, do banho gelado, do coração cicatrizado e do sentimento que se recusa a surgir. E mesmo que ela queira, ele não dá as caras.

Do jeito mais difícil, ela entendeu que o problema é a falta de batimentos cardíacos. A falta de reações exageradas, sorrisos espontâneos. Mas não dos outros, ela sente falta dela. Falta de querer acordar, querer se entregar por essas janelas fechadas da alma vazia. Mas com ela é sempre do jeito mais difícil.

- Dia par

Mesmo em SilêncioOnde histórias criam vida. Descubra agora