Dedicatória

108 10 0
                                    

Ela estava sentada na mesa daquele café, no qual sempre vai, onde pode ver a chuva escorrer devagar pelo vidro da janela que ocupa metade da parede, bem ao seu lado. Às vezes, além da chuva, ela também aprecia as pessoas, com suas capas e botas molhadas que caminham para lá e para cá, procurando sentido.

Com a mão sobre a mesa, acompanha os rabiscos feitos no tampo com alguma caneta pincel. A moça do café lhe trás seu chocolate quente, uma deixa, apenas para ficar ali, olhando pela janela. Um casal de idosos entra, fazendo com que o ar frio também lhe faça companhia. Aperta a jaqueta, volta a olhar pela janela. O céu, apesar de ser dia, tem um tom cinza com todas essas nuvens carregadas. Não há trégua. Volta a olhar para os números sob sua mão e se pergunta se alguém atenderia. Gostava de conversar com estranhos, gostava de reparar no brilho diferente nos olhos e do sorriso torto que a maioria parece cultivar, mas que nunca é igual.

Bebe um pouco do chocolate, que queima a língua, mas que não importa muito, porque ela sempre faz isso. Tem ânsia de sentir o gosto de tudo e nunca teve medo de se machucar. O que a feria era a espera, a falta de assunto. De cheiro, de gosto. A falta de pessoas de verdade, em um mundo que se desmancha com chuva, como lágrimas de um escritor desconhecido. Às vezes, alguém nota, mas nunca perguntam o por quê. Nunca sabem o que realmente acontece com quem decide acabar com tudo.

Levanta os olhos da xícara e repara no casal de idosos que entrou a pouco. Cada um tem uma caneca, onde esquentam uma das mãos. Com a outra, ele segura a mão dela. Consegue ver apenas o rosto dele, já que está sentado de frente para sua mesa, e se atreve a pensar que ele possui os olhos mais bonitos que já viu em toda a sua vida. Não, eles não são azuis. Não, ele não tem cílios longos. Nos olhos dele, ela consegue ver o sorriso da velha senhora, provavelmente sua mulher, como em uma fotografia que extraordinariamente, no tempo certo, consegue capturar o sentimento. E ela possui o segundo melhor sorriso que já viu. O primeiro, acaba de entrar pela porta e caminha em sua direção. É emoldurado por cachos abertos. É libertador, ao ponto de também prender.

Ela lembrou do parque, do banco, das flores azuis. Lembrou do nome rabiscado na mesa, junto com os números. Lembrou do livro que terminara de ler e que repousava sobre a mesa, em um canto afastado, para que ela não pudesse derramar o chocolate e manchá-lo. Lembrou da dedicatória. E sorriu junto, acompanhando o desenho suave dos lábios do desconhecido que agora sentava à sua frente, encarando-a com olhos de quem sabia uma vida inteira de segredos, e se tornando tão distante como a chuva lá fora...

- Dia par

Mesmo em SilêncioOnde histórias criam vida. Descubra agora