O frescor do lugar era a única coisa que afastava o mau cheiro. Ás vezes eu ainda me perguntava se devia continuar passando naquele lugar. Porém, as lembranças, mesmo que ruins, sempre faziam questão de aproximar-me daquele cemitério.
Não era muito longe da base, portanto eu não desviava de meu caminho. Em meus ombros, a mochila com os suprimentos achados pesava. Em minha mão direita, mantinha meu revólver carregado, e na esquerda, flores mortas que achara pelo caminho. Parecia uma metáfora do mundo atual: a guerra vencendo a paz.
Uma brisa gélida bateu em meu rosto, fazendo-me recordar que devia ir embora logo. Minhas roupas rasgadas e o sangue seco em minha pele não ajudariam a me aquecer. Suspirei profundamente e agachei-me em frente ao primeiro túmulo do cemitério improvisado. Pelo menos ali, a grama permanecia verde, o que era uma tremenda ironia do destino.
Coloquei uma das rosas no túmulo de Tarik. Ou, como ele gostava de ser chamado, Pac. Morto em combate, tentando salvar Mike da horda de infectados que os atacava. Em vão. Mikhael morreu dias depois, logo após conseguir voltar á base, do que chamávamos de "mordida invisível". Era uma doença que não sabíamos a origem. Possuía os mesmos sintomas de ser atacado por um infectado, porém sem ter tido qualquer contato com um. De qualquer forma, Mike tinha dito que não conseguiria continuar sobrevivendo. Não sem o Pac.
Coloquei a outra rosa no túmulo ao lado, que pertencia á ele. Toquei com as pontas dos dedos a pequena placa rústica de madeira onde se podia ler "MITW", com a única foto que tínhamos dos dois juntos pregada. Dei um sorriso amarelo. Não tinha como saber se MITW era real, mas todos concordaram que aquela era uma ótima placa.
Levantei-me e fui aos dois túmulos da direita. Coloquei uma planta amarela cujo nome eu não sabia no túmulo de Malena. Sua cova era apenas simbólica. Não tínhamos um corpo para enterrar. Tudo o que havia ali era um desenho feito por Helena de uma foto já inexistente. A garota havia sido mordida por um infectado e se transformado rapidamente. E ninguém tivera coragem a tempo de atirar em sua cabeça.
Por um lado, esperávamos encontrá-la e lhe dar um fim digno. Por outro, a última coisa que queríamos era achá-la. Afinal, isso significava que alguém teria que atirar. E ninguém queria puxar o gatilho.
Coloquei uma margarida parcialmente murcha na cova ao lado. Spok. Foi o primeiro a morrer. Não que não tivesse sido corajoso. Pelo contrário. Enfrentou os infectados de frente. Mas sua única arma era realmente sua coragem. Não teve condição de matar todos antes de ser morto. Sabíamos que havia algo entre ele e a Malena. Infelizmente, não tiveram tempo de ficar juntos. Eu esperava que logo pudessem fazê-lo.
Fui até outro par de covas. Até hoje me perguntava por que os casais tinham que morrer praticamente juntos. Deixei uma tulipa e uma azaléia nos lugares de Nilce e Leon. Eles eram os mais velhos do grupo. Já tinham se casado, e tinham experiência ao nos liderar. Porém, foi exatamente essa liderança que os levou a serem mortos numa emboscada de um grupo inimigo.
Eu podia parecer ingênua pensando sobre isso, mas os seres humanos tinham de ser realmente cruéis a ponto de, em meio ao caos mundial, lutarem entre si. Pessoas de merda.
Levantei-me e fui em direção á última cova. Coloquei minha última rosa ali. Rafael. Havia se apresentado para mim como Guaxinim. Eu ainda me culpava constantemente por sua morte. Era eu quem havia achado o garoto. Porém não consegui, sozinha, levá-lo para base. Não com vida. Mesmo que fizesse tanto tempo, e eu fosse realmente muito inexperiente na época, ninguém conseguia tirar da minha mente a sensação de culpa.
Limpei minhas mãos na blusa que já fora branca um dia e me levantei uma última vez, olhando para as nuvens pretas no céu. Era melhor eu me apressar. Dei uma última olhada para trás antes de ajeitar minha mochila em minhas costas e começar a correr.
Eu já podia avistar os portões da base quando vi, no topo da nossa pequena torre de vigia, Damiani tentar apontar a mira da arma para algo atrás de mim enquanto Satty, ao seu lado, gesticulava para mim.
Entendi o recado e observei uma horda de infectados atrás de mim. Como eu conseguira fazer tanto barulho? Não permiti tempo á mim mesma para ficar pensando sobre e joguei duas daquelas coisas ao chão com uma bala na cabeça, enquanto Damiani fazia o mesmo com sua mira certeira.
Tentei atirar novamente, mas minhas balas tinham acabado. Merda, eu achei que não precisaria. Tudo bem. Puxei o facão que trazia na cintura e fui ao combate corpo a corpo. Enquanto via o sangue jorrar para todos os lados, observei que mais gente da base viera ajudar. Sorri internamente. Quando se está em meio á destruição, é bom ver que ainda tem gente ao seu lado.
Respirei fundo quando a luta cessou. A cabeça do ultimo infectado rolou no chão. Uma visão grotesca e ao mesmo tempo maravilhosa. Estava finalmente morto, isso é o que importava. Eram definitivamente monstros,inimigos, destruindo tudo o que tínhamos. Porém, eram também as vitimas. Pessoas que não tiveram um destino certo entre a morte e a vida.
E sequer tínhamos a quem culpar. Não sabíamos a origem do problema.
Olhei para as pessoas á minha volta.
Alan, Calango, Maethe, Felps, Gabs, Damiani, Satty, Emisu, Zelune, Luba, Ronaldo, Rik, Felino, Helena...
Essa era apenas uma pequena parte de nosso grupo.
A maioria de nós eram antigos youtubers. Não por acaso. Os primeiros a serem avisados, a serem protegidos.
Porém, agora, o mundo não era mais dividido em quem influenciava as pessoas e em quem era influenciado.
Olhei para as nuvens pretas que se misturavam com a escuridão gélida do horizonte.
Agora, o mundo era dividido em quem matava e sobrevivia, em quem morria, e em quem era fadado a permanecer no mundo como um monstro.
Três anos atrás, o mundo conheceu o primeiro infectado.
Há três anos, o inferno residia na Terra.

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No One Left
Fanfiction"O mundo não era mais dividido em quem influenciava as pessoas e em quem era influenciado. Agora, o mundo era dividido em quem matava e sobrevivia, em quem morria, e em quem era fadado a permanecer no mundo como um monstro. Três anos atrás, o mund...