Capítulo XIV - Helena - "New person, new problem"

24 1 0
                                    






No dia seguinte, um ar de culpa se abatia por todo o acampamento. Por onde se ia, parecia haver pessoas deprimidas, tristes, caladas. Com certeza efeito do discurso de Bianca na noite anterior, sobre como todos nós deveríamos sentir a dor da perda de cada amigo ali. Não é por nada não, mas eu que geralmente sou a louca.
Gabs estava ao meu lado desde que o dia amanhecera. Como eu estava de guarda e não tinha aparecido "movimento", me pediu para que eu a treinasse com seu arco e flecha. Até ela, que adorava tagarelar sobre como era sua vida antes do apocalipse e como seria se nada disso tivesse acontecido, parecia pensativa. Além disso, sua mira não estava tão certeira como nos outros dias.
- Helena. - chamou ela, sem tirar os olhos do alvo - Eu preciso perguntar uma coisa bem... Particular, sei lá. Nada a ver com você. E nem sei se você entende disso, tipo, não que você não saiba, não estou falando isso, mas como eu disse, é uma coisa bem... Nada a ver.
Continuei ali em pé, de braços cruzados, tentando assimilar aquilo que ela tinha acabado de dizer. Aparentava ainda mais confusa, então parou e me olhou.
- É que, sabe, eu preciso falar com alguém sobre isso. É o Felps. Eu poderia até conversar com a Bianca, mas ela parece não estar pra papo esses dias, e como a gente têm treinado bastante ultimamente, eu pensei... Bem, seja o que for, isso envolve um outro assunto que, digamos, a Bianca disse pra não contar.
- Que é? - perguntei, mas Gabs apenas balançou a cabeça.
- Não posso contar, ué.
- Gabs... - ergui as sobrancelhas, soando naquele tom de "Faça o que eu mando ou vai virar amiguinha de zumbi".
- Ah, tudo bem. - ela se rendeu, suspirando. Em seguida, chegou mais perto, olhando para os lados, talvez para se certificar de que ninguém estaria bisbilhotando nossa conversa super secreta - Sabe aqueles mantimentos que trouxemos? Todos eles?
- É, devo dizer, vocês arrasaram.
- Pois é. - ela apertou os dedos das mãos, franzindo a testa - Digamos que nós não fomos no local indicado. Sabe, no exato lugar.
- Como assim?
- Olha, o grupo estava dividido pela metade, a gente tava cansado, desanimado, com fome, sede, tudo o que você pode imaginar. E pra piorar a situação, não sabíamos direito a localização, então também não tínhamos esperança de achar alguma coisa. Mas aí, vimos tipo um pequeno acampamento que parecia não ter ninguém, eu juro. Mas estava lotado de coisas. Aí nós meio que...
- Vocês roubaram?! - foi mais uma pergunta retórica, pois a resposta já estava bem clara ali. Gabs levou a mão à boca, indicando silêncio. Abaixei o tom de voz - Vocês roubaram mesmo?
- Sim, sim, fizemos isso. - ela balançou a cabeça negativamente, aparentemente arrependida - Cara, eu e o Alan não pensamos duas vezes. Olha só o tanto de coisa que encontramos! A gente pensou que achado não é roubado, mas... O Felps não ficou nada satisfeito com isso. Não vou ser injusta e culpar só o Alan, eu também tive a ideia e quis pegar tudo aquilo pra mim. Então... Você acha que posso ter perdido meu namorado?
- Bem... Roubar coisas não é do nosso feitio. - considerei.
- Eu sei.
- Inclusive, achamos que roubar e uma coisa errada, muito errada.
- Eu sei. - Gabs passou o peso de uma perna pra outra, desconfortável.
- E muitas pessoas podem não gostar disso nem um pouco. - acrescentei, pensando qual seria a reação de todos se soubessem.
- Eu sei! - ela respirou fundo, desanimada - Eu sei de tudo isso. Mas o Felps... Ele tá chateado.
- Você tem que conversar com ele. - aconselhei, sentindo como se Gabs fosse minha irmã. Geralmente em casos normais, as irmãs mais velhas aconselhavam suas caçulas em relação à namoros.
- Eu já tentei, acredite. Mas ele não quer me ouvir. - ela se sentou na grama, suspirando novamente - Ele nunca fez isso, está me evitando. E eu odeio ser ignorada!
- Ora, então faça com que ele te ouça!
- Você fala como se fosse a coisa mais simples do mundo. -ela bufou, incomodada - Como eu faria isso?
- Ué, não sei, siga ele, fale "eu te amo" inúmeras vezes, apareça toda vez perto dele, peça desculpas, fale que está arrependida, essas coisas. É tiro e queda. - dei de ombros, cansada de ter que achar soluções para relacionamentos complicados - Sei lá, isso é problema seu.
- Entendo. - murmurou desanimada, enquanto respirava fundo e mexia na unha quebrada - De qualquer forma, obrigada, Helena. Você acabou sendo melhor do que eu esperava. Sério.
Gabs me lançou um pequeno sorriso, parecendo realmente grata pela pequena prosa que tivemos. Geralmente as pessoas ficavam um tanto quanto solitárias num apocalipse zumbi e perdiam a confiança em todos à sua volta. Eram poucas as pessoas com que poderia ter um papo sincero, no qual a outra realmente se preocupasse com você além dela; te desse conselhos de amigo...
- Ei, Gabs. - chamei, balançando a cabeça - Mas por que você quis que eu te aconselhasse?
- Ah, não sei, por mais que eu achasse que você ia fazer cara feia pra mim e dizer: "Qual é, você acha mesmo que diante de um apocalipse zumbi, seu draminha adolescente barato é um assunto que deveríamos nos preocupar?"... - ela riu, como se me imaginasse falando isso - Você aparenta lidar tão bem com suas questões emocionais. Parece sempre determinada, não sei. Te vejo com o Júlio e dá pra ver que vocês se dão bem, então logo pensei que você entende disso. E não se sinta ofendida, mas... Acho que você parece a minha mãe.
- É, já falaram isso pra mim. - sorri, pensando na Luísa. Em seguida, balancei a cabeça - Mas eu definitivamente não estou esse arraso todo em questão de relacionamento ultimamente.
Olhei para Júlio que estava passando à nossa frente a alguns metros dali. Ele carregava uma grande porção de lenha em seus braços; parecia mais musculoso. Estava suado como se tivesse dado duro um dia inteiro. Sua regata amarelo caju estava encardida e manchada por gotas de sangue, e o boné laranja tentava inutilmente proteger os olhos irritados do sol quente.
Gabs acompanhou meu olhar e em seguida fez cara feia, como se pensasse que não deveria ter tocado no assunto.
- Qual é, não fique triste por causa disso. Todo mundo sabe que no final das contas vocês vão acabar fazendo as pazes. - disse ela, numa tranquilidade que não a pertencia havia poucos minutos.
- Ei, como sabe o que aconteceu?
- Helena, a única coisa que corre mais rápido do que infecção aqui é fofoca, e você sabe. - Gabs pesou os ombros, me lançando um sorriso sem graça - Olha, se servir de consolo ou sei lá, de ajuda, como amiga eu diria que a sua situação amorosa está praticamente igual à minha. Portanto, os conselhos que me deu cabem à você também.
Olhei pra ela com tom de desaprovação ao meu próprio conselho.
- Ah, qual é. Vamos, fale com ele. Converse com ele. E se ele não quiser te escutar... - ela pigarreou imitando minha voz de um jeito gozado - Faça com que ele te escute!
Gabs inclinou a cabeça para o lado, dando dois tapinhas no meu ombro e em seguida saiu andando. Observei Júlio ainda tentando juntar em seus braços todos aqueles pedaços de madeira e bufei, decidindo que iria lá.
- Não acredito que estou mesmo correndo atrás de macho. - murmurei pra mim mesma e caminhei em direção à ele.
Júlio deve ter percebido a minha chegada, pois logo tratou de acelerar o passo. É claro que ele não facilitaria as coisas.
- Ei, espera! Precisamos conversar. - falei tocando seu ombro.
Parou, revirando os olhos. Umedeci os lábios, pensando no que eu deveria dizer.
- Me perdoa. - pedi. Ele nem me olhava nos olhos - Sério, você sabe que eu não queria, e que não fui eu quem beijou. Então...
- Já acabou? - me interrompeu, erguendo as sobrancelhas de forma impaciente.
Sem esperar eu continuar, ele se virou, caminhando na direção oposta. Respirei fundo antes de correr me colocar à sua frente novamente, bloqueando seu caminho.
- Qual é a sua? Eu já pedi desculpas! - sinceramente, já me sentia irritada com aquilo. Balancei a cabeça, sem compreender o motivo do drama.
- Ah, eu não sei. - disse ele, segurando com força a lenha - Por que não pergunta o Lucas?
- Está sendo infantil.
- Pelo menos não saio por aí ignorando os sentimentos das pessoas e beijado qualquer um, né. - ele sorriu de forma sarcástica.
Quase sem pensar, dei um tapa em seu braço, o que fez com que toda a lenha que estava custando a segurar caísse no chão. Júlio me lançou um olhar raivoso, ajeitando o boné.
- Depois eu que sou o infantil. - ironizou, se abaixando para pegar.
- Olha aqui. - falei rispidamente, puxando-o para cima pela camisa. Júlio se assustou quando viu que eu tinha endurecido a expressão - Eu já estou cansada disso, ouviu? Cansada! Abra os olhos e veja ao redor: estamos num apocalipse zumbi, prestes a morrer! Que surpresa, não? Pois é, e ao invés de as pessoas se aproximarem para desfrutar os últimos momentos de vida, o que elas fazem? Se afastam e agem de forma completamente indiferente, fazem tempestade num copo d'água! E pro seu governo, eu já estou farta disso.
Fiz uma pausa, segurando com mais força ainda sua blusa.
- Eu já pedi desculpas não sei quantas vezes pra você, e me ignorou. Estou tentando fazer com que você olhe nos meus olhos, mas não está dando certo. O que quer que eu faça, me ajoelhe bem aqui e te peça em casamento? - aproximei meu rosto, tornando as coisas ainda mais tensas. Agora sim tinha conseguido sua total atenção - Eu nunca me humilhei correndo atrás de homem e não vai ser agora que isso vai acontecer. Eu tenho milhares de preocupações e não tenho tempo pra ficar suspirando enquanto penso em você. Então eu paro aqui. Não quero mais alimentar essa palhaçada, se quiser seguir com a sua vida me chamando de vadia pelas costas, ótimo, caguei. Seja feliz. Porque se tem uma coisa que eu não tenho um pingo de paciência é com cu doce.
Soltei sua camisa de forma brusca e andei na direção do portão sem nem olhar pra trás. Andava a passadas largas e pesadas, querendo logo sair daquele lugar agonizante. Sentia fincadas no estômago, como se toda a raiva e amargura despejadas ali em forma de palavras duras tivessem me feito mal. Só queria algo para fazer, ocupar minha mente com outras coisas. Então, nada melhor do que ficar de guarda.
Entretanto, não avistei ninguém no portão. Franzi a testa, me atentando à alguns ruídos do lado de fora. Por precaução, tirei uma flecha e a posicionei no arco, andando com cautela e silêncio até lá.
Do lado de fora não tinha nenhum zumbi. Nada. E os ruídos não eram rugidos, eram... Roncos.
- Japa. - chamei, o cutucando com o pé. Ele tinha caído num sono pesado, sentado ao lado do portão, encostado no muro - Japa!
- Oi! - ele se pôs de pé num salto, arrumando o cabelo e esfregando os olhos inchados - Oi, ei, eu tava, é...
- Tá, tá, tá. Não precisa explicar. – falei checando a região e me certificando que não tinha nenhum zumbi, ou quem sabe um guerreiro ninja de algum grupo inimigo escondido atrás das moitas - Eu sei que você estava dormindo.
- É que o movimento estava baixo. Quase não tive problemas essa noite.
- Tudo bem, acho que você merece descanso. - falei me preparando para ficar.
- Ahn, obrigado! - balancei a cabeça como se dissesse "de nada" e Japa saiu rápido, entrando pelo portão.
Fiquei parada ali uns minutos, apenas olhando em volta. Depois desisti de ficar em pé e me sentei, apoiando o cotovelo o joelho. Só então percebi o quanto estava cansada. Sem resistir à tentação, fechei os olhos por um instante, mas apenas por um instante. Eu não iria dormir.

No One LeftOnde histórias criam vida. Descubra agora