Capítulo l - Helena - "Rescue"

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Dentro daquelas paredes, eu me sentia totalmente presa. De qualquer forma, eu acho que é assim que eu deveria me sentir, afinal, é o apocalipse.
Sim, o que era uma fantasia simples e boba finalmente se concretizou. Aquela historinha divertida que contávamos para colocar medo nas crianças, ou assunto dos filmes de terror que passavam à noite na televisão... Agora, tudo era real. De minuto em minuto e sem descanso, tínhamos que vigiar e atentar-nos caso algum morto-vivo viesse nos rondar. Isso mesmo.
Nosso mundo foi possuído por zumbis, e este é o presente e o futuro. Este é o nosso fim; o apocalipse.
No início, era uma coisa boa. Graças aos avanços medicinais, os cientistas conseguiram criar uma fórmula capaz de tratar praticamente todas as doenças conhecidas. No entanto, isso fez com que a infecção se proliferasse de uma maneira incontrolável. Há três anos, o primeiro indivíduo foi indicado com essa tal "doença" um tanto degenerativa. Ele virou notícia, alvo de estudo e pesquisas, fonte de curiosidade, e até aí estava tudo bem, até mais pessoas atribuírem o vírus, e cada vez mais, e mais...
De repente, a festa se transformou num funeral. O que nos restava eram os cuidados que não sabíamos ter. Grupos de sobrevivência foram criados, mas muitos dos quais eu mesma fiz parte logo se desintegraram, e tivemos que correr em busca de ajuda.
Há algum tempo, encontrei este daqui, que estava logo no início. Na época, havia dez pessoas aqui, mas que infelizmente perdemos sete. Sete companheiros se foram, sete que me abrigaram. Maldita infecção.
Com o decorrer do tempo, fomos agregando cada vez mais pessoas ao nosso grupo, e hoje contamos com mais de quarenta pessoas, que auxiliam umas às outras. É a nossa regra aqui; "só podemos seguir em frente quando gente ajuda gente." É bobinho, mas tem um significado enorme se parar pra pensar.
Posicionei a flecha de madeira em meu arco de metal e mirei o pontinho vermelho na "testa" do meu boneco improvisado feito com saco de arroz. Eu fazia isso para cada vez mais melhorar minha pontaria e não falhar, caso as aberrações viessem nos atacar. Para o treinamento, eu usava as flechas de madeira que eu mesma esculpia com os gravetos do enorme carvalho que se encontrava do lado de fora dos muros do abrigo. No entanto, para lutar, eu pegava as flechas de metal, que eram bem mais resistentes.
Puxei a corda do arco, apertando tanto sua parte dianteira que os nós dos meus dedos ficaram brancos. Respirei fundo.
- Helena!- chamou alguém, mas eu resolvi ignorar e tentar focar no alvo.
- Lelena!- gritou Luísa, minha irmã mais nova. Só ela me chamava assim.
- Que foi?- me virei depois de errar por pouco a mira - Vocês estão me desconcentrando.
Maethe, ao lado de Luísa, tentava ajeitar os longos cabelos lisos castanho-escuro. As duas ofegavam, pareciam ter corrido uma maratona. A garota pigarreou um pouco e apertou a pistola presa ao seu cinto.
- Há um pequeno grupo de pessoas a nordeste. - ela apontou com o olhar a direção - Estão cercados por um bando de zumbis. Felps viu com o binóculo. Eles não estão muito longe daqui.
- Estão trancados numa cabana. - Luísa colocou as mãos na cintura - Mas há dezenas deles. Você tem de ir para ajudar a resgatá-los.
Fiz que sim com a cabeça, e, de prontidão, caminhei até o boneco e arranquei a flecha, colocando-a de volta na aljava.
Subi dois degraus de cada vez, tentando chegar o quanto antes à "torre de observação", onde estava o pessoal. Dei uma espiada pelas janelas de vidro e vi algumas pessoas lavando suas roupas no lago, até onde nós podíamos proteger.
Abri a porta, e vi que Felps ainda observava o suposto grupo com seu binóculo. Alan, Damiani, Satty, Calango, Zelune, Luba, Bianca e Emisu tentavam visualizar alguma coisa lá fora, ou ajeitavam seus armamentos.
- Ah, ela chegou. - disse Damiani assim que me viu, colocando seu atirador nas costas - Já estava demorando. Vamos logo.
- Pelo menos ela veio. - comentou Satty, caminhando em minha direção. Ela falou em tom casual, mas o namorado lançou um olhar um tanto suspeito em sua direção, como se houvessem discutido. - Anda pessoal, ou os pobres coitados vão virar um bando de empanados.

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- Mais depressa! - sussurrei, enquanto caminhávamos da maneira mais discreta possível pelo matagal, em direção à cabana. Podíamos ver o tanto de zumbis que a cercavam, rondando por ali, à espera de um lanchinho. Alguns já tentavam, de alguma maneira, derrubar uma das paredes - Temos que ser rápidos, logo vão sentir nosso cheiro. Ah, e lembrem-se: sempre juntos, se nos separarmos vai ficar mais difícil. Vamos nos dividir em, no máximo, dois grupos. Tudo bem?
O resto concordou com a cabeça, tentando não fazer barulho. Paramos em frente à pequena porta de madeira da cabaninha, tentando arrumar nossos armamentos. Olhei por entre as folhas secas para visualizar melhor. Realmente, havia muitos deles. E eu acho que nunca lutei com tantos de uma vez só em toda minha vida.
- Atiradores. - chamei, o que fez uns dois mortos-vivos olharem em nossa direção de maneira desconfiada.
Damiani e Emisu se posicionaram ao meu lado, com suas armas em punho. Elas atiravam as flechas, mas não tinham um arco como o meu. No entanto, não faziam barulho como as armas de fogo, e o barulho atrai os zumbis.
Soltei a flecha de prata, que logo se cravou na testa de um deles, servindo de ponto de partida para que Damiani e Emisu começassem o massacre junto comigo. Nós derrubávamos cada vez mais os malditos, e também atraíamos cada vez mais seus parceiros. Não demorou muito para que o resto da imensa horda começasse a marchar lentamente em nossa direção, famintos por carne humana.
Nesse momento, o restante do grupo saiu do meio do matagal e partiu para a luta corpo a corpo. Eu conseguia atingir a cabeça dos zumbis com facilidade, já que eles se locomoviam com tanta lentidão.
Um pouco mais a frente, vi que um dos zumbis havia agarrado o braço do Calango, que tentava a todo custo se afastar, batendo nele com um taco de beisebol. Essas criaturas podiam ser demoradas, mas tinham uma força colossal.
Fiz menção de pegar uma flecha da aljava, mas percebi que tinham se esgotado. Praguejei baixo e puxei uma adaga do cinto, pendurando o arco nas minhas costas e correndo em direção deles. Calango já gritava desesperado quando eu enterrei a pequena faca na cabeça do monstro, empurrando seu peito com força pelo antebraço.
- V-valeu. - ele disse, ainda pálido pelo susto.
- Não adianta bater na cabeça, é sempre, sempre no cérebro. - respondi, olhando para ele. Em seguida, levantei a voz para que todos ouvissem - Pessoal, temos que atingir o cérebro!
Calango concordou com a cabeça e saiu, girando seu taco nas mãos. Olhei em volta por um instante.
Não havia - definitivamente, não havia - tantos zumbis como quando chegamos. Ainda, eram vários, mas achei que o resto do grupo seguraria a barra muito bem. Bianca, que estava ao meu lado, lutava como se quanto mais infectados matasse, mais prêmios iria ganhar. Sua pele morena brilhava com a pouca luz do sol pelo suor, e os enormes cabelos crespos escuros estavam amarrados em um rabo de cavalo bagunçado.
Assim que ela terminou com um último deles, peguei seu braço e a puxei pra perto.
- Ei, vamos entrar nós duas. - eu disse em tom meio seco. Minha intenção não era falar como se eu odiasse o fato de termos de entramos juntas, mas acho que saiu assim. Quero dizer, nós não éramos próximas, até porque éramos o oposto: ela era uma garota mais gentil e comunicativa, e eu era mais seca e séria, grossa até quando não queria ser. Eu tinha espírito de liderança. Mas eu não desgostava da Bianca.
Ela concordou com a cabeça e guardou seu facão no cinto. Corremos em direção à pequena cabana, mas claro, a porta estava trancada.
- Abra! - gritou a garota, girando a maçaneta. Nem sequer um movimento lá dentro - Abra, somos amigos!
- Eles não vão abrir. - falei, tentando ver alguma coisa lá dentro pela greta da porta. Ela me olhou, desanimada.
- Como tem certeza?
Não respondi. Estávamos num apocalipse zumbi, até eu não abriria por questão de segurança. Teríamos que fazer isso à força. Olhei para o facão de Bianca preso ao seu cinto e a maçaneta da porta.
- Quebre-a. - falei, erguendo as sobrancelhas.
Ela pegou sua arma e golpeou umas duas ou três vezes o local, até que por fim, ela se quebrou. Dei um passo à frente e empurrei com força a porta com a sola do meu pé, escancarando-a.
A cabana era simples. Tive certeza de que, se não tivéssemos ido resgatar o grupo que estava ali, eles seriam devorados em pouco tempo. Tudo estava escuro, e eu não conseguia ver nem um palmo à minha frente, então me virei para Bianca logo atrás de mim.
- Lanterna? - perguntei.
A garota puxou alguma coisa na parte de trás de seu cinto e me entregou.
- Sério que você carrega lanterna em um cinto? - ironizei, ligando-a.
- Nunca se sabe. - ela respondeu, olhando na direção do feixe de luz - Pode ser útil em horas como essa. Eu prefiro me prevenir.
Dei de ombros e me concentrei na tarefa. O chão era feito de tábuas velhas de madeira, já danificada pelos cupins. Estávamos num cômodo que mais parecia uma sala de estar, tirando a enorme bagunça e três pequenos colchões encostados na parede, uma escrivaninha e algumas velas apagadas.
Seguimos nosso caminho por uma passagem. Percebemos que a cabana era dividida em dois cômodos, ou seja, este era o último. Passei o feixe de luz pelo local, e então, fui surpreendida com o cano de uma enorme espingarda apontada para a minha testa. Senti meu corpo gelar por inteiro.
- Quem são vocês? - a voz atrás da arma era masculina.
- Ei, ei! Somos amigos! - Bianca falou, tentando ser o mais suave possível.
O cara soltou um grunhido baixo, como se a resposta não tivesse sido satisfatória.
- Nós somos de um grupo de sobrevivência, e viemos aqui para resgatar vocês. - a garota chegou mais perto, e o nosso "amiguinho" pareceu hesitar um pouco, e recuou um passo.
Ele abaixou um pouco a espingarda para me ver. Ele era um pouco mais alto que eu. Tinha grandes olhos castanhos e cabelos bagunçados. Nos encaramos por longos segundos, até Bianca pigarrear um pouco.
- Viemos salvar vocês.
- P-poderia abaixar... Isso aqui um pouco? - perguntei, pressionando com pouca força para baixo o cano da espingarda.
Vi o cara agora, por inteiro. Ele era bem magro, e parecia ter a nossa idade. Não era muito bonito assim, mas...
Ah, o que eu estou pensando?
Apontei a lanterna para o canto da cabana, e vi que o resto do grupo se colocava de pé. Ali havia uma moça de longos cabelos castanhos. Ao seu lado, um homem de cabelos levemente espetados que a ajudava a ficar de pé. Também havia um outro, um pouco mais robusto, que estava parado, nos encarando com expressão assustada. E por fim, um garoto loiro de olhos azuis que vinha caminhando em nossa direção. Ele tinha o rosto levemente manchado, mas ainda assim era bem bonito.
- Os nossos amigos estão lá fora, então vamos depressa antes que mais coleguinhas das pragas apareçam e resolvam fazer um banquete. - falei, tomando a dianteira.
- Espere aí! - a mulher chamou, colocando uma mochila nas costas - Para onde nós vamos?
- Para um abrigo. Lá tem várias pessoas como nós. - respondeu Bianca, com um sorriso amigável. Ficava me perguntando como uma pessoa pode ser tão gracinha e eu não - Ah, por falar nisso, meu nome é Bianca.
Continuamos seguindo caminho, mas ela me cutucou com o cotovelo, como se dissesse "Vamos, seja legal também!"
- Helena. - falei. Saímos da cabana, e o resto do pessoal nos esperava a alguns metros dali.
- Hum, esses são os encrenqueiros? - perguntou Luba, num tom divertido. Ele e a mulher pareciam se conhecer, pois se abraçaram com força.
- Anda gente, vamos logo.
Todos começamos e voltar para o abrigo, a maioria conversava, animada. Parecia até que estávamos numa trilha com a escola. Na verdade, eu era a única que seguia calada, olhando para os lados, tirando minhas flechas de todas as cabeças dos zumbis que eu via pelo caminho.
- Ei! - chamou o moço dos cabelos espetados, que se apresentou como Gustavo, mas seu apelido era Gusta - Esse... Abrigo é seguro?
Limpei a ponta da minha flecha de prata e a pus de volta na aljava. Em seguida, olhei para ele, mantendo um ar misterioso.
- Num apocalipse zumbi... Nada é seguro, parceiro.

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