6. Animal selvagem ferido

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As músicas que antes apenas o faziam companhia em sua solidão voluntária, agora faziam um sentido absurdo para ele, como se tivessem sido escritas para descreverem o que ele sentia minuciosamente. Alguns versos chegavam a machucar de tão atrozes e realistas. Então ele não fora o primeiro e nem seria o último a sofrer por amor, mas tinha quase absoluta certeza de que ninguém havia vivido coisa parecida.

Samuel amava um fantasma. Era a melhor definição para Ariel; um fantasma que se materializara apenas para fazê-lo sofrer quando se tornasse ausência novamente. Segundo Macário era só deslumbre, era cedo pra dizer que era amor. Mas já haviam se passado duas semanas desde o último encontro dos dois, e desde então, sumiço. Se era mesmo verdade que o que os olhos não vêm o coração não sente, então por que diabos a saudade aumentava cada vez mais, a níveis insuportáveis? Como era concebível sentir algo tão forte por uma mulher com quem se encontrara apenas duas vezes? O pior mesmo era não ter a menor ideia se ela voltaria a aparecer ou não, do nada, como antes, e isso criava expectativas diárias, que sempre levavam à frustração. Samuel se tornara um paranoico que queria ser encontrado.

Elias completava seus vinte e dois anos e convidara os amigos mais próximos para uma festa em sua casa, como sempre fazia. Churrasco e muita cerveja. Samuel pensara em recusar o convite, não estava com cabeça para nada, mas era Elias, e este fazia sempre questão de sua presença. E além do mais talvez o fizesse bem se distrair, sair de casa, onde passava cada tortuoso segundo lembrando-se de Ariel.

Havia cerca de quinze pessoas na casa de Elias quando Samuel chegou. Agenor e Alcides já estavam lá, falando e rindo bem alto, aparentemente embriagados, cada um segurando um copo de cerveja. Uma música do Legião Urbana tocava em volume alto; Elias um grande fã da banda, tanto que fizera uma "homenagem" colocando o nome do cachorro de Russo. A maior parte das pessoas achava ofensivo ou que era uma piada, mas para ele era realmente um tributo ao seu ídolo.

— O viadinho veio! — Alcides levantou o copo em comemoração.

— Tua mãe não me chama assim quando está sendo enrabada — defendeu-se.

— Ela não ia sentir nada com teu micro pinto.

— Verdade, do jeito que ela está, nem meu braço ela ia sentir.

Todos riram. Insultar as mães uns dos outros era comum entre eles e por mais que pegassem pesado, raramente se ofendiam de verdade.

Elias surgiu com um copo vazio e uma cerveja. Entregou a Samuel, preenchendo o copo em seguida.

— Parabéns, viado.

— Parabéns o caralho. Cadê meu presente?

— Presente, porra? Vai se foder.

— Vai me presentear com o cu de novo? Pelo menos aparou dessa vez?

Risadas.

Uma garota se aproximou. Tinha o braço tatuado, o cabelo raspado de um dos lados da cabeça e um piercing no nariz.

— Parabéns, Broxa.

— Vai dar a xereca de presente?

— Pra quê? Passar raiva?

— Dá pra fazer cócegas.

— Eu até daria, mas não trouxe a pinça pra achar teu pintinho.

— Ah, deixa de ser egoísta. Me passa uma das tuas DSTs, vai...

Ela mostrou o dedo médio para ele sorrindo, e se afastou. A maioria dos amigos de Elias era "alternativo", quase todos com o humor boçal com que Samuel se acostumara e aprendera a usar. Mas sempre se sentia deslocado, um intruso que fingia participar.

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