7. A verdadeira ameaça

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— Estou apaixonado, Macário.

Macário riu para Samuel, observando-o com seus olhos experientes.

— Sim, você está.

— E agora, como faço pra parar?

— O coração não tem pálpebras.

— Como assim?

— Se você não quer ver algo, fecha os olhos, mas não tem como fazer o mesmo com sentimentos. Se quiser desligar, vai ter que desligar tudo junto e isso uma bala na cabeça deve resolver. Assim pelo menos ganho mais um cliente.

— Não quero meu velório feito aqui. Quero uma funerária de vergonha.

Os dois riram.

— Mas diga, quais são os sintomas?

— Do que?

— De que você está apaixonado.

Samuel pensou por um instante.

— Bem, eu simplesmente não penso em mais nada. Cada coisa que vejo, cheiro, sinto, ouço, remete a ela. E dói terrivelmente não poder fazer nada.

— Ela reapareceu depois do primeiro encontro de vocês?

— Sim, uma vez mais. Ela me encontrou na universidade. Fez sexo selvagem comigo em uma sala de aula.

Macário fez uma cara cômica de admiração. Então riu.

— Ela trepou com você em uma sala de aula?

— Você é velho demais pra usar esses termos.

— O que eu deveria dizer? Fornicar? Saiba que eu trepei muito em minha vida, moleque. E ainda trepo, e sem azulzinhas.

— Sem azulzinhas? — Samuel deu uma risada incrédula.

— Não entendo a surpresa.

— A senhora sua esposa é sortuda.

—Sou viúvo. Mas vez ou outra arranjo namoradas. Coloco molecotes como você no chinelo.

— Aqui estou discutindo sexo com um sexagenário.

Samuel adorava conversar com Macário. A PACE não era uma loja à qual os clientes entravam o tempo todo para olhar as prateleiras. Quem se interessava por caixões? Por isso mesmo Macário passava o dia inteiro sentado sem nada para fazer, a não ser quando tinha seus clientes, todos frutos de alguma tragédia. Assim sendo, Samuel era sempre uma visita bem-vinda. Tinha funcionários, claro, Pedro no atendimento, o motorista e outro homem responsáveis pelo translado dos caixões e uma tanatóloga, preparadora e maquiadora de cadáveres. Macário passava a maior parte do trabalho sozinho, em seu escritório, atendendo ligações, preparando documentações e negociando com serviços terceirizados. Ou simplesmente lendo livros, em especial sobre espiritismo.

— Tenho escrito algumas coisas — disse Samuel.

— Poesias?

— Também. Mas a maioria pensamentos.

— Gostaria de lê-los.

— Trouxe um.

Samuel abriu a mochila e retirou um pequeno caderno preto. Abriu-o em uma página e entregou a Macário. O velho ajeitou os óculos e leu em silêncio:

Por que me salvar do vazio me roubando a paz?

Torturar-me com memórias quase palpáveis

Escravizar-me com a necessidade de mais?

Arlequim [completo]Onde histórias criam vida. Descubra agora