5. Primeira vez

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"I want your pain

To taste why you're ashamed

And I know you're not just what you say to me

And I'm not the only moment you're made of"


O barulho da chuva forte e dos trovões cadenciados formava uma sinfonia esplêndida da natureza, gritos furiosos de Deus à humanidade. Essa era a impressão que Samuel tinha enquanto caminhava a passos lentos, com seu guarda-chuva preto, pensativo. Sentia o peito vazio, e o vácuo inexplicável provocava uma dor até então desconhecida. Só havia uma pessoa que seria capaz de lhe abrandar tais sentimentos tão inéditos. Seu irmão tinha respostas para quase tudo que o perturbava, mas aquele assunto era delicado demais, tinha vergonha de contar-lhe a verdade. Mas para o velho Macário não teria problema em se abrir.

Chegou em frente à fachada da funerária, onde letras garrafais mostravam PACE, em latim, "paz". Era um estabelecimento pequeno, modesto, com alguns caixões à mostra encostados às paredes. Samuel sacudiu o guarda-chuva na entrada antes de fechá-lo. Havia um funcionário atrás do balcão, Pedro, um rapaz alto e narigudo. Samuel o cumprimentou e foi direto ao escritório, onde havia um senhor com semblante aprazível, olhos experientes por trás dos óculos pequenos, cabelos grisalhos e sorriso afável.

—A uma hora dessas da manhã e nessa chuva, só posso deduzir que alguém morreu.

— Não dessa vez, Macário.

— Que pena.

Apesar dos sessenta e poucos anos, Macário não aceitava ser chamado de senhor ou "seu Macário". Seuhumor negro ajudava bastante para que Samuel o tratasse de forma menos respeitosa como ele desejava.

— Vou acabar falindo por falta de clientes. Daqui a pouco vou ter que começar a demitir os funcionários. As pessoas andam saudáveis demais. Sou obrigado a torcer pra que sofram acidentes mortais.

— As pessoas morrem direto. Mas a PACE não tem tanta credibilidade assim.

— Veio nessa chuva falar mal da minha funerária, moleque?

— Vim te pedir conselhos — sentou-se, encostando o guarda-chuva na escrivaninha.

— Só me interessa se o assunto for morte.

— É amor.

Macário deu uma risada.

—São sinônimos...

Macário era simpatizante com o espiritismo, talvez por isso não visse a morte como algo terrível, uma vez que era esse seu negócio. Vira tantas pessoas derreterem-se em luto, despachara tantos filhos, pais, avós, direto para o cemitério, que havia se acostumado com a ideia do fim, e mais ainda, brincava com ela, obviamente com as pessoas certas, como Samuel, que conhecera certa vez em uma fila de supermercado. Apesar do humor negro, Macário tinha serenidade e experiência, era um ótimo conselheiro, às vezes um verdadeiro guru. Sabia a hora certa de falar sério.

— Estou apaixonado.

— Alguma garota da faculdade?

— Uma stripper.

Macário deu uma risada alta.

— Uma stripper? Se envolveu com uma prostituta, garoto?

— Ela é dançarina.

— Mas transa por dinheiro?

Samuel ficou sem palavras. Macário riu de novo.

— Uma prostituta! Quem você pensa que é, moleque? Richard Gere? Eu que estou mais próximo da idade dele e nem por isso fico procurando Julias Roberts por aí.

Arlequim [completo]Onde histórias criam vida. Descubra agora