Capítulo XXI

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Borrões...

Sopros...

Dormência...

Meus sentidos embaralhados me permitiam piscar lentamente. Os membros correspondiam intuitivos. Recebi abraços, um beijo no rosto e um adeus de Anna. A câmera em slow motion insistia em captar todas as cenas tortuosas de minha partida e bloqueavam e dopavam e empurravam as palavras dele pelo abismo que era minha consciência no momento.
O torpor de meu corpo só era movido pelo mais puro reflexo, agora entendia em partes como um zumbi ficava ao vagar atrás de nada em particular, mas que no fundo o que o movia era a fome visceral de carne, a fome... Um dos princípios básicos da sobrevivência humana. Eu era movida por uma luz em alerta que piscava em minha cabeça, dizendo para onde ir e não me fazendo questionar, pois não tinha mesmo capacidade de tal ato por agora.
O chamado do vôo para NY soou longínquo, meus pés com peso extra se movimentaram através dos lapsos da garota loira entorpecida por somente descobrir que era correspondida nos últimos segundos de sua estadia na cidade dos caipiras.
Joguei minhas malas na esteira. Não devolvi o sorriso à boa moça que fez o check in, hoje não era um bom dia. Minha pequena mochila acomodou meus pés cansados quando me estirei na poltrona rígida. No meio da viagem alguém me ofereceu lanches e sucos aos quais recusei sem gentileza. Houveram turbulências, mas nenhuma se comparavam às minhas.
Fui despertada não pela voz do comandante avisando que sobrevoávamos o J.F.Kennedy, mas pelo turbilhão de pessoas que sacavam suas malas de mão dos compartimentos acima de nós. Levantei sentindo a boca seca, mas sem vontade nenhuma de beber água. Acompanhei o fluxo de pessoas até a esteira, onde minhas malas demoraram um século para aparecer. As peguei rapidamente e as joguei no primeiro carrinho que encontrei, caminhando então para o exterior do aeroporto, onde já podia sentir o cheiro da cidade grande.
Flashes.
Era tudo de que precisava no momento. Pus os óculos escuros e evitei os urubus de plantão.

- Clark, é verdade que você vai se dedicar exclusivamente à vida no campo?

- Clark, você foi deserdada pelo seu pai, por isso estava trabalhando em um mercadinho?

- Clark, como você acha que a alta sociedade vai lhe receber?

- Clark, Theo Jameson e você terminaram de vez?

Atravessei sem paciência pelo meio daqueles abutres, que sobreviviam das carcaças de celebridades. Mas hoje não teria muito pra vocês, sorry.

- Senhorita Clark.

- Olá Shane. - sorri.

O homem esbugalhou os olhos de tal forma que me fez refletir um pouco. Certamente a antiga Clark nem lhe olharia e entraria no carro lhe dando ordens sem um pingo de educação.

- E... Er... Fez uma boa viagem?

- Não necessariamente. Obrigada por perguntar. Vamos antes que aqueles pseudo repórteres abusados me persigam.

- Sim senhorita.

A viagem fora calma. Algum engarrafamento típico me levou um pouco a paciência. Ter passado tempo em Goldenville me desabituou ao caos da selva de pedra.
Minha casa monstruosa e chamativa despontou duas esquinas acima. Branca demais, soturna. Essa não era a casa dos meus sonhos, não mesmo.
Desci do carro dando uma boa olhada na fachada enorme, nas portas de vidro, na escadaria em pedra portuguesa. Com um suspiro profundo subi aqueles degraus, as portas estavam abertas, então somente entrei, como se fosse uma visitante. Meus olhos varriam todo espaço grande demais para o meu gosto. Não era acolhedor, era solitário.
Não havia cor, não haviam cheiros nem sentimentos impregnados nos objetos. Tudo se tratava de decoração e estilo, soberba e demonstração de classe e riqueza, as futilidades dos moradores do Upper East Side. O exibicionismo escrachado em pinturas milionárias de Raphael, ou em esculturas horrorosas de Michelangelo. A arte me era uma coisa longe de ser compreendida em sua totalidade.
Os carpetes felpudos afundariam meus saltos, mas eu usava um par de sapatilhas que não deixavam de se perder em uma imensidão de penugem branca.
Meus passos me levaram até a beira da escada. Um barulho atraiu minha atenção para a sala de jantar.

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